24 de maio de 2007

Nos bastidores

Nas últimas semanas estive acentuadamente nostálgico. Escrever sobre meu avô me trouxe muitas lembranças, daquelas que nos deixam com um sorriso bobo no canto da boca, e o olhar atravessando corpos e paredes à nossa frente. Depois escrevi sobre sua irmã famosa, minha tia-avó cantora, Stelinha. Passei várias tardes e noites ouvindo e editando seus discos. Em seguida indiquei um ensaio fotográfico sobre alguns velhinhos da Ilha de Santa Catarina, que me fizeram lembrar da tarde que passei no colo da mãe do Jedião, num asilo de Florianópolis, ouvindo deliciosas e assustadoras histórias. Nostalgia pura e arrebatadora, que me fez viajar no tempo e ver o quanto a vida é boa, apesar dos pesares.

E aí veio um desses pesares. Faleceu a vó Aladia. Meu coração nunca esteve tão preparado.

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Engraçado que meu avô sempre esteve presente na minha vida, mas não minha avó. Posso citar muitas coisas que fiz com o Dr. Arthur, mas pouquíssimas que tenha feito com a Dona Aladia. Ela era dessas mulheres de bastidores. Estava por trás de tudo. Nada aconteceria como aconteceu se não fosse por ela. Uma sombra que conduzia o corpo, sem ele nem desconfiar.

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O fim da escola dominical marcava a partida àquela casa. Antes de abrir a porta o cheiro da macarronada já nos arrebatava. A rotina da chegada era incansável e euforicamente repetida toda semana. Uma correria desenfreada para pegar os primeiros pedaços de pele de galinha assada, seguida de alvorossada disputa pela ‘Gazetinha’. Depois era só desfrutar daquela macarronada maravilhosa e a inigualável tarde na casa da vó.

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Enquanto morei com eles, na casa dos fundos, repetidas vezes observei admirado aquela cena. Merecia, sem sombra de dúvida, uma foto. E que foto incrível daria. Mas só agora é que isso me ocorreu.

De longe já se ouvia a voz respeitosa acompanhando o texto. Desde que meu avô não conseguia mais ler sozinho, ela assumiu a função. A luz do abajur refletindo nos cabelos brancos deixava a cena ainda mais bucólica. Já passava das dez da noite, a casa e a rua faziam solene silêncio e ouvia-se unicamente a voz da Lalá, sentada ao lado de seu marido, com a Bíblia e um devocionário abertos, acompanhando a leitura diária. Era impossível interromper aquele momento. Anjos certamente sentavam-se ao redor. A sala era um templo. A casa uma catedral. E o Senhor sorria, tão enternecido quanto eu.

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Ela orava todos os dias por todos os netos e todos os bisnetos. Quando meus filhos nasceram, foi quem nos recebeu na porta. Nas duas vezes colocou sua mão enrugada na cabeça lisa do bebê e os abençoou dizendo, com lágrimas nos olhos – que você cresça em estatura e graça, diante de Deus e dos homens.

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No fechar dos olhos
Arlindo Lima

Quando o sol se põe sereno demoro a apreciar a cor
Se num eclipse foge o dia, choro por falta de calor
Do teu abraço amigo, do auxílio a prosseguir
E hoje aqui com sombra e frio, eu vim me despedir

Tuas palavras e teus gestos regeram vidas a cantar
Tua correção por certo, mostrou a trilha pra voltar
E apesar do tempo nada vai se apagar
Pois no fechar dos nossos olhos, tudo posso relembrar

E na presença do Senhor
Nos despedimos, mas com o penhor
De na presença do Senhor
Nos encontrarmos em ruas de ouro
Sem mais dor

Do CD Canções do Arraial
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3 comentários:

  1. Anônimo10:31 PM

    Um coração preparado não precisa de palavras, só de um abraço. Fique com o meu.

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  2. Sou muito agradecido a Deus por ter tido o enorme privilégio de conviver com esses velhinhos queridos.

    Espero, do fundo do coração, ser gente boa como eles quando "crescer".

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  3. Valeu Vinicius. Obrigado.

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