9 de junho de 2007

Criaturas da noite

Todo fim de tarde é idêntico. Antes mesmo de descer da moto já posso prever tudo que terei que enfrentar ao entrar em casa. Começou há alguns anos e não posso, de forma alguma, imaginar as forças que estão envolvidas nesse mistério. Os mesmos sons se repetem diariamente ao me aproximar da porta.

Na maior parte do ano chego em casa quando a barra escura da noite já encobriu todo o céu. As criaturas da noite estão começando sua intrigante e mórbida cantoria e a floresta impede que a luz da lua ilumine a porta de entrada da casa. Os sons do lado de dentro se confundem com miados agudos, grunhidos terríveis ou risos assustadoramente infantis, mas cessam imediatamente quando a porta se abre.

Mal posso crer que está acontecendo tudo de novo. Não há como evitar. Sei que a única maneira de me livrar da maldição por mais uma noite, a única forma de conseguir descansar na minha própria casa, é encontrando a origem dos sons. Só então estarei livre até que tudo se repita no dia seguinte.

Encho o peito de ar inconscientemente crendo que isso me enche também de coragem. Sei exatamente qual será o fim de tudo isso, mas não posso evitá-lo. A única chance de encontrar a paz é enfrentando os horrores que se escondem todas as noites pelos cantos da casa.

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"[Deus] é forte o suficiente para se alegrar na monotonia. É possível que Deus diga a cada manhã para o sol: 'faça novamente'; a cada noite, ele se volta para a lua e diz: 'faça outra vez'. É possível que não seja uma necessidade automática que produza as margaridas iguais; pode ser que Deus crie todas as margaridas separadamente, mas ele nunca se cansa de fazê-las. É bem possível que tenha o eterno apetite da infância, pois nós pecamos e envelhecemos, e nosso Pai é mais jovem do que nós mesmos".
(Chesterton, citado por Philip Yancey em Alma Sobrevivente)

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O ar de mistério é sempre drasticamente rompido por duas sonoras risadas. É quando surgem, invariavelmente debaixo da mesa ou da escada, os rostos alegres dos meus filhos, realizados por terem repetido pela milésima vez (ou mais) a mesma brincadeira.

Essas duas criaturas me dão a alegria de, por alguns instantes, libertar-me da monotonia sisuda da vida adulta e participar novamente do eterno apetite da infância.

3 comentários:

  1. Anônimo9:07 PM

    Muito bom! No início, pensei se tratar de algum bicho sinistro... mas no fim, apenas os seus filhotes. Melhor assim!

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  2. é realmente muito louvável ver o teu rosto se alegrando com a brincadeira:
    dia após dia...
    noite após noite...
    Sei que um dia eles vão se lembrar disto!
    E dar muitas risadas de você.
    Se perguntar como você conseguiu.
    E usufruir da monotonia.
    :)****************

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  3. Anônimo12:24 AM

    Bela maneira de narrar o encontro diário com os pimpolhos. Eles nos fazem repensar e reaprender a vida. Nos lembram o que é realmente importante (durante o dia chegamos a pensar que o importante são aquelas bobagens para as quais nos dedicamos no trabalho).

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