O horizonte estava agora cerca de dois palmos acima de onde deveria estar. Havia estranhamente se deslocado, como se a terra plana dos antigos estivesse loucamente inclinando-se. Percebeu que estava sendo sugado mar adentro com cada vez mais velocidade. E o horizonte erguia-se lentamente. Quando enfim tomou consciência do que de fato estava ocorrendo, foi estranhamente inundado por improvável calmaria na alma. As mãos soltaram-se das bordas e os braços cairam pesados pelo lado do corpo. Os músculos da face, dos ombros e das costas entregaram-se por compleo ao mais puro ócio. O pavor cedeu lugar à contemplação. A angústia à reverência. Sentiu-se no auge da maturidade adulta, com a sabedoria precisa de alguém que já viveu uma longa vida e ainda mantém a consciência e a virilidade. Percebeu que naquele louco instante estava no mais sofisticado camarote do mais belo teatro, e observava sob perspectiva única, privilegiada e indescritível o mais intenso espetáculo que jamais alguém vira.
A gigantesca parede de água avançando sobre a costa era como o som perfeito de cem mil orquetras, os movimentos precisos e fantásticos de cem mil bailarinos, as vozes penetrantes de cem mil tenores. Desejou intensamente, motivado por puro carinho, que seus pais e um punhado de amigos mais chegados estivessem ali com ele. Angustiava-se por não poder compartilhar com ninguém tão vasta beleza. Extasiado pelo esplendor indizível do evento, perdeu totalmente o controle sobre seu corpo. Permanecia estático, com a cabeça pendendo para a esquerda, a boca aberta e a coluna acentuadamente arcada. Lembrava agora um velho senil em seu leito de morte.
Aos poucos, a orquestra, os bailarinos e os tenores foram aquietando-se. Permanecia apenas o sibilar insistente, agudo e monótono de um violino solitário. O horizonte agora já estava quase diretamente sobre sua cabeça.
Os segundos seguintes poderiam ter sido anos. Quando a proa do barco ergueu-se vigorosamente, Tino ainda teve tempo abrir os braços e lançar a cabeça para trás, olhos fechados, como a criança que recebe na face as primeiras gotas de chuva em uma tarde de verão, e foi engolido pela onda.
17 de março de 2008
Uma vida no mar [2]
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Muito legal. Você leu "Os trabalhadores do mar", de Vitor Hugo?
ResponderExcluirLi não. Digitei o nome no são Google e achei em português e de graça. Aliás, tem muitas opções:
ResponderExcluir> http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/traduzidos/os_trabalhadores_do_mar.htm
Trabalhdores do mar é um grande livro. Mas é romance, texto longo. Eu diria que este está mais para "O velho e o mar" de Ernst Hemingway.
ResponderExcluirBelo texto. Nunca imaginava você este contista de marca maior. Poesia pura. Belas imagens literárias. E sobretudo mistério. O texto sempre acaba com um gostinho de quero mais. Um não-sei-quê que me prende...