Florentino da Mata, apesar do nome, era do mar. Nos últimos seis anos, porém, atufou-se na cidade para estudar. Da Mata, do mar para cidade, para o concreto, debruçado sobre livros, esperava poder salvar sua própria gente da miséria que os assolava desde que o peixe começou a minguar. Achava engraçado buscar na cidade, que matara os peixes, a esperança de salvar seus irmãos da fome. Há poucos dias havia retornado, instalando-se nostálgico no mesmo quarto onde cresceu.
Desde o seu retorno passava todo tempo caminhando de casa em casa, revendo amigos e parentes, proseando, curioso sobre tudo que passara nos seis anos de sua ausência. Falava pouco da cidade. Dizia que não se tinha o que dizer sobre lugar feio como aquele. Queria mesmo é falar de areia, de restinga, carangueijo e pesca. E do mar. Do mar que tornara-se ainda mais pobre. Que negava-se a oferecer-lhes comida. Que roubava-lhes a praia. Havia, inclusive, levado a casa de Nicolau Cajado, que morava agora de favor com amigos.
Quando o sol se punha, aquietava-se em casa e, à luz de lampião, proseava com seus pais até os olhos pesarem. Quando menino era chamado por todos na vila de Flor. Menos pelo pai. Para ele o menino era Tino, muito mais macho. E ele preferia assim. À noitinha, em casa, falavam da sua infância, dos risos, da meninice, da fartura de peixes, da moenda de farinha, das festas, do som da rabeca, do fandango, dos tamancos batendo na terra. Uma única vez falaram de seus irmãos que haviam morrido no mar - como deve morrer toda gente de pesca - encerrou o pai. E não tocaram mais no assunto.
Apesar da melancolia nos olhares e nas histórias, o retorno ao litoral revigorou Tino. Passou mais de uma semana peregrinando de gente em gente, assuntando desapressado com todos, nas soleiras das portas, nas varandas, nas sombras das árvores ou na praia, com o sol queimando o lombo e os pés assobiando na areia seca ou espirrando a fina lâmina de água adiante.
Em uma manhã exageradamente quente, não pôde mais resistir à sedução do vento, que trazia o cheiro do mar. A brisa arrebatava-lhe a alma.
Lançou-se sozinho às ondas, como uma criança eufórica diante do brinquedo novo, enquanto o sol ebulia-se da água no horizonte. Venceu a arrebentação em remadas determinadas. Os músculos ressurgiam eufóricos e inesperadamente firmes depois dos anos encurvado sobre livros. Cortou dezenas de vagalhões impetuosos e famintos antes de finalmente vagar tranquilo no remanso das águas profundas. O mar lhe parecia coberto de diamantes refletindo a luz do sol, que agora já pairava a mais de um palmo do horizonte. O corpo molhado de suor e água fazia-o brilhar como um anjo e era ele mesmo um tributo de louvor aos céus com sua beleza agreste. A brisa que soprava constante, era a resposta graciosa de Deus ao canto entoado pelo mover do corpo jovem no barco.
Tino encontrava-se de frente para a costa quando começou a perceber o movimento estranho do mar. O continente afastava-se rapidamente como se o barco estivesse sendo sugado por uma vigorosa corrente que o recolhia mar adentro. Enquanto ainda observava a costa, foi engolido pela sombra que seguiu derramando-se convicta até a praia e deixou todo litoral na escuridão, menos as pontas dos montes, que ainda sorviam diretamente o amarelo intenso do sol. Os olhos de Tino mantinham-se fixos na praia, temendo olhar para trás como a criança que, à noite, prefere atravessar de olhos fechados o longo corredor escuro que a separa da segurança da cama dos pais. Quando enfim encontrou coragem suficiente para virar-se, estranhou o impossível desaparecimento do horizonte. A linha firme e resoluta que dividia o mar do céu havia sido arrebatada e diante dele via-se apenas uma imensa mancha cinza-azulada. Demorou alguns segundos, observando o oeste com os olhos semi-cerrados e a testa franzida como um campo arado, agarrado às bordas do barco com força tal que lhe esfolava os dedos, antes de perceber o que havia ocorrido.
[continua]
10 de março de 2008
Uma vida no mar [1]
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E depois? E depois?
ResponderExcluirO que aconteceu?
Se entendi, o barco naufragou. Suicídio. A dor da homossexualidade foi impossível de segurar!
ResponderExcluirSe entendi, o barco naufragou. Suicídio. A dor da homossexualidade foi impossível de segurar!
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