2 de março de 2008

Saudade

Quando eu ainda era uma criança miúda ela me despertava medo. No meio dos mimos de todos os velhinhos, ela era a única pessoa que imponha algum respeito. Com ela por perto não ousávamos aprontar.

Os anos passaram e a infância me escoou pelos vãos dos dedos. Somente na idade adulta é que conheci o coração daquela senhora.

Chorei mais de uma vez ao vê-la entregando-se de corpo e alma para cuidar da irmã que já não suportava o peso da idade avançada. Me curvei, em respeito e admiração, cada vez que vi que a entrega não era somente à irmã, mas a todos que estavam ao seu alcance. Aliviou as dores de centenas de pessoas, inclusive as minhas, entregando-lhes seu coração e seu riso solto. Jamais conheci alguém mais disponível ao próximo quanto ela.

No tempo em que fui seu vizinho, uma janela minúscula fechada por uma pequena tábua unia nossas cozinhas. Inúmeras vezes ouvia o bater suave das suas mão na tábua. Ao retirá-la, deparava-me com pastéis, mini-pizzas com massa feita por ela ou algum docinho. Viveu em comovente simplicidade, sempre grata pelo pouco que tinha e sempre disposta a repartir o que não lhe sobrava.

Já beirando os oitenta anos, repetia com naturalidade – “não quero nunca ficar velha”.
E não ficou. Morreu jovem como sempre.

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Nesse mês completo seis anos longe de Curitiba. No dia em que saí de lá, os quatro velhinhos mais queridos do mundo me abraçaram e beijaram em longa despedida. Eram todos meus vizinhos. Por cinco anos compartilhei intensamente minha vida com eles. Para chegar à minha casa, bem nos fundo do terreno do meu avô, tinha que passar pelo casarão do Dr. Arthur e da Dona Aladia e pela casinha da Ica e da Aci. Todos foram para mim exemplos tocantes em vários aspectos, muitos dos quais possivelmente ainda nem me dei conta. Confesso que os admiro mais hoje, inundado de saudade, nostalgia e lágrimas, do que quando convivemos. Culpa da maldita cegueira que nos impede de ver as coisas importantes quando é preciso vê-las. Enquanto reclamamos das folhas caídas no chão, não vemos a beleza vertiginosa dos galhos imensos dançando ao vento.

Desde que saí de lá, um a um, os quatro nos deixaram. Uma geração se foi. Minha filha mais nova mal os conheceu. Certamente não se lembrará deles. Eu, no entanto, jamais me esquecerei.

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Nos fins de tarde, quando subia a escadaria do longo corredor, a primeira visão que se abria atrás do portãozinho de ferro era a janela da casinha delas. O sol, a essa hora, batia de frente na casa banhando-a de ouro e refletindo como louco nos cabelos brancos e nos olhos que acompanhavam minha chegada. Era impossível não desviar do caminho direto à minha casa nos fundo e ir de encontro àqueles olhos. A porta se abria antes de eu chegar. Se sentasse no sofá para uma conversinha rápida, receberia invariavelmente suas mãos em minhas costas. Se falasse ou demonstrasse qualquer fiapo de cansaço ou desânimo com o longo dia enfrentado, suas mãos puxariam delicadamente minha cabeça até deitá-la sobre seu ombro magro mas aconchegante. E a ouviria sussurrar essa canção.

Almir Satter - Cabecinha no ombro.mp3


Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora
E conta logo a tua mágoa toda para mim
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora,
que não vai embora, que não vai embora
(...) porque gosta de mim

Amor, eu quero o teu carinho, porque eu vivo tão sozinho

Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora,
se ela vai embora, se ela vai embora
(...) porque gosta de mim

A suadade ficou.


Para Aci,
que viveu o Evangelho da forma mais intensa e pura que já vi,
e que certamente nunca soube disso.
Em memória.



Veja também:
[Ica]
Naquele Instante
[Aladia] Nos Bastidores
[Arthur] O Quarto Rei
[A casa] Catedral

2 comentários:

  1. Puxa, mano, lindos esses escritos sobre os velhinhos.
    A Aci foi mesmo o maior exemplo de simplicidade que eu conheci. E aquela casinha delas era o lugar mais aconchegante do mundo.


    P.S. - Conheço uma outra mulher que segue os passos da Aci. Que se doa também assim, de maneira como poucos tem coragem. E que participou como ninguém dos últimos anos que esses velhinhos passaram entre nós.

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  2. Conheço essa mulher também mano. Acho que ela que me ensinou a amar tanto nossos 4 velhinhos...

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