28 de julho de 2008

Pipa

Subo lentamente a viela escura que me separa da ponte. O dia me foi insuportável. Passei silencioso e cabisbaixo pela porta de casa. Sabia que não me esperavam. Nem hoje, nem nunca. Há anos não esperam por mim. Desistiram, como quem desiste da pipa arrancada das mão pelo vento ou pelo cerol de outro moleque. E eu, como a pipa, vaguei sem rumo, sem destino, sem vigor, sem vida. Cambaleando ao vento, num vai-e-vem desgovernado, deixei-me levar.

Nas muitas noites de sarjeta, farrapo humano, semi-consciente, embebido em suco gástrico, sonhei com os últimos suspiros desse vôo desgovernado, com a proximidade do solo, com o inevitável fim. Nos sonhos, porém, eles estavam todos lá, de braços erguidos, correndo na minha direção, rindo, extasiados pela possibilidade de recuperar-me, seu bem mais precioso, fruto de suas mãos. E eu ria, e ria sem parar, em um êxtase descontrolado gritando – estou aqui, estou aqui!

Mas não correram. Apenas observaram a pipa ao vento. Lamentaram a perda por certo. Choraram, creio. Mas não lhes pareceu prudente correr o risco de atravessar essas ruelas, guetos e esquinas. Não lhes pareceu correto deixar seus compromissos para trás por uma pipa. Depois do choro, gritaram - maldita pipa, rebelde, inconseqüente! E viraram as costas. E tocaram a vida.

Eu olhei de longe, quando ainda muito alto, vi suas costas e chorei. Depois decidi deixar-me levar. E caí lentamente, por quanto tempo nem sei, até o beiral da ponte, de onde estou prestes a saltar.

BlogBlogs.Com.Br

Um comentário:

  1. Cara, me pareceu que você falava do Rafael, aquele "ex-polegar" tão mergulhado no abismo, depois de ter sido tão admirado pelos fãs...

    ResponderExcluir