31 de maio de 2010

Artrite [3]

A noite gelada e úmida foi pesada demais para Ramon. Acordou tossindo forte e cuspindo grosso. Os meninos já haviam ido e Ramon percebeu que estava novamente molhado de urina que não era sua. Seus cobertores e caixas de papelão tinham sido jogados no chafariz e o frio era tanto que não teve coragem, nem ânimo, de se lavar. Caminhou tossindo até o bar que acabava de abrir as portas e atendia algumas prostitutas que encerravam sua noite de trabalho com café quente. Uma delas, que tomava café ali todas as manhãs, pagou um pingado para o maltrapilho, e um pão quente com manteiga.

Sentado na calçada com as costas apoiadas na parede do bar, braços apoiados nos joelhos, segurando o pão e o café, Ramon percebeu que a estátua sisuda no centro da praça estava diferente. Trazia agora o braço, antes estendido, dobrado e colado ao corpo, com a mão segurando suavemente o maxilar inferior, e os olhos voltados para o chão.

Ramon passou alguns dias em um albergue para recuperar-se da noite molhada. Quando retornou à velha praça, estranhou a ausência da estátua. Nos dias seguintes começou a ouvir, circulando entre os moradores de rua, histórias incríveis de um homem misterioso que começou a aparecer nas madrugadas sem falar nada, aquecendo mendigos, indigentes, bêbados, noiados, prostitutas e travestis com o calor do próprio corpo.

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ARTRITE:
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27 de maio de 2010

A minha derrota é a minha vitória



"Publicidade é uma atividade criminosa."

"Rico é muito inseguro, o que é natural
porque depende de pobre pra tudo."

25 de maio de 2010

Artrite [2]

Ramon dormia na praça. Saído do cerrado em busca de grama verde, terminou no asfalto.

Estava ali há uma semana, agarrado sempre a uma garrafa de cachaça, sob o olhar cortante e o dedo em riste da estátua de pedra. Numa noite gelada, três meninos apareceram ali compartilhando um cachimbo improvisado em lata de coca-cola. Era madrugada e já chegaram chapados. Mijaram na estátua e em Ramon, que dormia em seus pés de mármore, e saíram gargalhando até o banco logo em frente. Dali ameaçaram e xingaram o homem, mostrando seus canivetes, enquanto ele ia resignado até o chafariz lavar-se. A água gelada doía nas mãos. Depois de limpo, caminhou pelas ruas procurando algum toco de cigarro que pudesse lhe dar uma mínima sensação de conforto.

Quando chegou novamente à praça, com algumas bitucas na mão, os meninos já estavam dormindo diretamente sobre o chão gelado e cobertos pelo orvalho branco do inverno. Ramon, passando do lado deles, parou por um instante e encarou-os com pena. Foi até seu mocó, protegido pelos motores do chafariz, buscar fósforos, caixas de papelão e cobertores. Tragando os tocos de cigarro, forrou o chão com as caixas, puxou cuidadosamente os guris para o papelão e os cobriu. Acendeu e fumou as últimas bitucas, uma a uma, antes de voltar para os pés mijados da estátua, cobrir-se com o cobertor molhado de urina e dormir. Assim que pegou no sono, uma pomba pousou no ombro da estátua e cochichou:

- Quando fizeram algumas dessas coisas aos meus pequeninos, a mim o fizeram.

A estátua chorou e o fio da lágrima revelou um rosado de carne no rosto de pedra.

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ARTRITE:
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17 de maio de 2010

Cristal, quem dera

O poeminha ‘Pedra’, musicado e interpretado pela voz e violão de Gladir Cabral.*



Nietzsche estava constrangedoramente certo quando afirmou que o amor é uma virtude reservada aos fracos. Um macho, no sentido mais brucutu do termo, não pode amar, a não ser que assuma e submeta-se a algum tipo de fragilidade.

Não é por nada que o exemplo de amor mais chocante e emblemático registrado na história da humanidade, seja o relato do desconcertante caminho trilhado por um Deus todo-poderoso, que decide conduzir-se volutaria e obstinadamente à morte, passando antes pela humilhante posição de homem e servo. É Paulo quem articula que Jesus, o Deus-homem, mesmo sabendo-se Deus, não julgou que essa posição fosse de alguma forma algo a que deveria apegar-se, como que requerendo para si os direitos adquiridos de Senhor do Universo. Antes, impensável e irrepetível loucura, o Deus-homem não considerou humilhação suficiente ter-se moldado em carne, suor, pelos, saliva e excrementos. Julgou ainda necessário, entre os homens fazer-se servo, um simples serviçal esquecido, sem ter onde repousar a cabeça, errante na poeira da palestina, um canto esquecido do poderoso império romano. E como se não bastasse, foi ainda além, tornando-se um infame condenado a morte e um defunto abandonado pela multidão e recolhido por meia dúzia de amigos. Ou menos.

Não é de estranhar, portanto, que o novo-testamento seja recheado de afirmações estranhas como; quando sou fraco é que sou forte, que bom que o Reino foi revelado aos pequeninos e não aos poderosos, bem aventurados os que choram, o menor entre vocês será o maior, os últimos serão os primeiros.

O caminho de fragilização de Deus, no entanto, não poderá jamais ser confundido com o caminho trilhado por um frouxo que se move pra qualquer lugar porque não tem forças para fazer seu próprio caminho. Um bunda-mole que é levado por qualquer um para qualquer lugar. A fragilização de Deus é ato voluntário e corajoso de quem sabe a que veio e onde quer chegar. De quem peita qualquer um que se meta em seu caminho para desvia-lo da rota de abnegação, de entrega de si mesmo em favor do outro; no caso, da humanidade.

Curioso é perceber na história que o caminho que a igreja cristã seguiu foi invariavelmente outro. Católicos, protestantes, orientais, ocidentais, ortodoxos, pentecostais, divergem em inúmeros e insignificantes pontos, mas abraçam-se em um único e crucial elemento – trocaram a cruz de madeira pelo cetro de ouro.

Para mim sobra o horror de dar-me de cara com um Deus como esse e desejar intensamente segui-lo, mesmo me faltando coragem suficiente para tanto.



* O poeminha ‘Pedra’, que escrevi dias atrás, ganhou de presente gracioso, generoso e inesperado uma doce melodia do músico, poeta e agora também parceiro Gladir Cabral.

13 de maio de 2010

Me calo

"Entretanto se desejarmos nos meter nas obras sociais, a porta está escancarada para fazê-lo informalmente. [Mas] é você e eles, cara a cara, com a cruz pesada nos ombros, sofrendo na pele o que eles sofrem, para entender a dor deles." Lou Mello (grifo meu)


O Roberto Carlos tinha tanto pra te falar, o Rubinho não tem nada, mas o Lou disse tudo. Então me calo e lhe peço que dê uma passada lá na Gruta.

6 de maio de 2010

Pedra

eu era pedra
e ainda sou

eu era vidro
eu era seda
eu era cera
cristal
quem dera

eu era pedra
e ainda sou

era menino
era criança
era esperança
amor
pudera

eu era pedra
e ainda sou

eu era hoje
seda e cristal
criança e amor
eu era
e ainda sou

3 de maio de 2010

O amor de Nietzsche

Escutei isso num dia manso, lá em Rio do Sul.

"Nietzsche dizia que o amor é um sentimento reservado aos fracos. E ele estava certo."

E o Diamanso também estava certo.
Quem dera eu fosse fraco o bastante para amar.