Diante da possibilidade do erro, Fernandes petrificava. Não do erro próprio, é claro. Era o erro do outro que lhe endurecia as articulações. Sofria de uma espécia de artite moral.
Mas nem sempre foi assim.
Houve tempo em que Fernandes não se preocupava com falhas alheias tanto quanto não se preocupava com as próprias. Vivia errando e cercado de erradores, tudo isso parecendo-lhe absolutamente natural. Mas veio o dia da reviravolta. O dia em que Fernandes conheceu Deus.
É evidente que antes desse dia esse sujeito displicente já ouvira falar do criador. Tinha até alguma espécie de respeito por ele, mesmo não tendo convicção de que havia de fato um criador. Caso houvesse, no entanto, certamente o respeitaria. Tanto que, quando soube, por alguma forma de contato místico, que realmente havia, tratou de respeitá-lo da melhor maneira que pode. Estava ciente de que, havendo um criador, seria essencial ter uma boa imagem aos olhos do todo-poderoso. Fuçou no livro sagrado todas as regras que pôde encontrar. Leu, estudou, decorou, introjetou, respirou, arfejou, cada letra de cada lei que era possível encontrar.
Foi quando Fernandes se deu conta de algo terrível. A lista de regras que conseguiu era enorme, impraticável. Achou aquilo tudo um exagero e tratou de selecionar alguns ítens e excluir outros. Selecionou cuidadosamente, seguindo critérios extraídos de dentro do próprio livro santo. Emendou textos de todos os cantos de tal forma que podesse justificar-se quanto a maioria das exclusões. Para muitas não encontrou justificativa nenhuma, mas excluiu-as mesmo assim. Se alguém lhe perguntasse sobre essas, citaria as outras e ponto final.
A lista que sobrou, cumpriu-a literalmente, com algumas exceções, é claro, que cuidava para manter bem escondidas de forma que ninguém nunca soubesse. E escondia tão bem que nem ele mesmo conseguia encontrar as próprias falhas, convencendo-se cada vez mais de que cumpria mesmo à risca sua lista de regras escolhidas.
Foi a partir desse ponto, lista definida e cumprida, que Fernandes começou a transformar-se em pedra. Começou pelo dedo indicador, que permanecia inalteradamente rijo. Primeiro tímido e discreto. Com o tempo adquiriu confiança suficiente para fazer o braço acompanhar o dedo, fazendo questão de ser visto apontando os erros de qualquer um. A expressão do rosto de Fernandes, antes leve e descontraída, passou também pelo macabro processo de congelamento. Olhos sempre semicerrados, à busca de algo, a testa franzida e os cantos da boca sutilmente voltados para baixo.
Todos já notavam a pele pálida de Fernandez e os passos duros e pesados que o levavam de um lado a outro, dedo em riste, apontando para todos os cantos. A dureza do braço e do punho há muito tempo não permitia mais que ele apontasse para si.
Foi quando os poucos amigos que restaram sentiram falta do homem que já não aparecia mais em público há vários dias. Preocupados, foram até sua casa e arrombaram a porta da frente, dando de cara com uma estátua de mármore de Fernandes apontando pela janela para o bar onde, anos antes, ele constumava sentar com os amigos para beber e jogar cartas, ou assistir uma partida de futebol.
Fernandes foi levado pelos amigos para a praça da cidade, bem na frente de vários bares e dos pontos de prostituição e tráfico que surgem com o cair da noite, onde permanece cheio de orgulho até hoje, agora já coberto de cocô de pombo, apontando para todos os que passam por ali.
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ARTRITE:
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Cocô de pombo - o destino dos fariseus.
ResponderExcluirAi, caramba! Caiu algo no meu ombro...
Quem não tiver cocô de pombo no ombro, que atire a primeira pedra :-).
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