Ano passado me procuraram para uma entrevista. O assunto seria a igreja evangélica e esses caras estranhos chamados sem-igreja. Me mandaram as perguntas, eu respondi, mas a matéria nunca apareceu em lugar nenhum. Ainda nessa fase de vacas magras no blog, desenterrei a entrevista pra postar aqui. As perguntas foram formuladas pelo jornalista carioca e flamenguista Marcos André Lessa.
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1) O movimento dos sem-igreja cresce a cada dia: blogs e comunidades no orkut já são dedicados ao tema, como lugares para "congregar" e compartilhar de questionamentos parecidos. Na sua opinião, quais os motivos para esse movimento ocorrer?
É um movimento natural. É pra onde tudo migra hoje. Virtual, pessoal, íntimo. Grandes instituições estão em descrédito em todos os ambientes, não só no cristão. E a internet surgiu como uma alternativa que viabiliza contatos e trocas entre gente sem a dependência de uma instituição toda hierarquizada, toda rígida, toda dogmática. Sem falar no custo pra manter as instituições formais funcionando. Pouca gente ainda se dispões a arcar com esses custos. É um preço muito alto que se paga, tanto em dinheiro como em mão de obra. É só olhar pras grandes instituições religiosas e ver o tanto de dinheiro, tempo e gente envolvida só em manter tudo funcionando. As pessoas estão saturadas desse método e tentando encontrar formas alternativas. É natural que seja assim.
2) Nos posts "Um primeiro passo" e "Ter, pertencer, ir" vc parece concluir uma série de reflexões e a partir dali começar uma nova trilha, só que agora sem estar ligado oficialmente a uma igreja evangélica. Como foi esse processo? Houve algum momento/fato/acontecimento especial que foi um marco, um início desses questionamentos?
Não houve marco não. Houve certamente um processo, mas não sei se consigo defini-lo bem. Fui sendo influenciado por um monte de boas pessoas, tanto pessoalmente como através de leituras. E aquilo que fui recebendo, fui passando adiante, especialmente dentro do contexto da instituição da qual fazia parte – e também através do blog. Basicamente em uma busca por simplificação tanto na mensagem como na estrutura de vida comunitária e na vivência da mensagem do evangelho de Jesus na prática, no dia-a-dia, na vida comum. Meu desligamento acabou sendo uma consequência natural, uma vez que o que vinha vivendo e falando ia causando certo desconforto na instituição à qual eu era filiado (ou igreja da qual era membro, tanto faz). Eu não queria ficar causando desconforto à ninguém, portanto me afastei antes que o desconforto virasse briga ou coisa parecida.
3) O que foi mais difícil pra você nesse processo, até a conclusão acima?
Rompimento nunca é fácil. Envolve um monte de amigos, gente boa, gente querida. E um monte de hábitos. Claro que gostaria de poder romper com a instituição, a forma, sem precisar romper com gente, pessoas. Mas na prática isso é muito complicado. Perde-se vínculos. Encontros que antes eram semanais passam a ser esporádicos. Mesmo que os encontros semanais fossem, no geral, bastante frios e superficiais, eles aconteciam e a gente via os rostos e tinha os nomes sempre na memória. Encerrando esses encontros, aos poucos vai-se perdendo vínculos. Essa é a parte chata.
4) No blog você também citou algumas reações à sua decisão. Alguma específica te marcou, positiva ou negativamente?
Não lembro exatamente que reações citei lá, mas ouvi uma pequena porção de bobagens a meu respeito. De gente que nunca falou mais do que um 'oi' e 'tchau' comigo, mas já tinha opiniões fortíssimas sobre mim, e de alguns mais próximos também. A maioria na linha de que eu era um ‘desviado’ e que queria ‘causar divisão’, enfim, passei a ser considerado um sujeito perigoso. Melhor manter distância. Mas foi pouco, comparado a histórias que ouço por aí. Os caras tinham seus motivos. Estavam protegendo suas crenças e tal. Não tenho nada contra ninguém. Até entendo essas reações. Lamento, mas entendo. Mas teve também alguns bons amigos que permaneceram bons amigos e deram uma grande força. Isso foi ótimo.
5) Em outro post vc cita que seu dízimo agora seria encaminhado à caridade, ou algo do tipo. Como você chegou a essa conclusão? E a passagem que diz "trazei todos os dízimos à casa do tesouro"?
A passagem sobre a ‘casa do tesouro’ foi escrita num tempo em que existia uma ‘casa do tesouro’. Essa casa não existe há mais que 2 mil anos! O 'templo', depois de Jesus, passou a ser o coração do homem. É aí a casa do tesouro. No coração de cada um. E no coração não cabe dinheiro; cabe amor, cuidado, misericórdia, paz, perdão, graça, proteção, carinho. Essas coisas todas se manifestam de um para o outro de muitas formas e uma delas é repartindo-se o que cada um tem em amor. É como Paulo falou pra rapaziada de Corinto: “No presente momento, a fartura de vocês suprirá a necessidade deles, para que, por sua vez, a fartura deles supra a necessidade de vocês. Então haverá igualdade, como está escrito: ‘Quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco’.” Essa obrigação de dar 10% da renda pra igreja da qual o sujeito é membro é uma tolice. O amor é que nos constrange e nos move a repartir o que temos com quem não tem, ou tem pouco. Simples assim. Sem obrigação, sem barganha, sem valor nem endereço fixo.
6) Lendo seu blog, tenho a impressão que você foi criado na igreja. E você tem dois filhos. Fica preocupado se eles vão abraçar ou não a fé cristã, mesmo sem frequentar uma igreja qdo crianças?
É preciso corrigir a definição do termo ‘igreja’ aqui. Meus filhos estão aprendendo, junto comigo, a ser igreja em todo canto, em todo tempo. O que eu espero de todo coração é que eles abracem a Cristo. Espero que Deus me dê a graça de vê-los vendo um pouquinho de Jesus em mim, ou pelo menos no meu desejo sincero de seguir Jesus. Se isso (ou qualquer outra coisa) os levar a abraçar a pessoa de Jesus, certamente todo resto estará resolvido. Há muita gente caminhando por aí abraçada à ‘fé cristã’ dentro de ‘igrejas’ sem, no entanto, jamais ter abraçado o Cristo.
7) Em "Ter, pertencer e ir" vc fala de uma solidão pós-decisão de ser um "desigrejado". Queria que vc falasse mais sobre esse sentimento, e como ele se expressou na sua rotina.
Acho que falei um pouco disso na pergunta 3. Todo rompimento é traumático. As noites de domingo foram bastante esquisitas no começo. Eventualmente sinto falta de um amontoado maior de gente. Mas quando estava nesse amontoado, achava ele meio vaziozão. No fim, passei e ainda passo alguns dos momentos mais intensos da minha vida familiar quando nos reunimos em torno da mesinha de centro na sala com livros, músicas, violão e copos de nescau à postos. Passamos algumas horas ali de longas e profundas conversas que, por algum motivo, nunca tive antes. Estando sozinho, passei a assumir como minhas muitas responsabilidades que antes estavam delegadas à instituição. E ajudou também o fato de ter mais tempo livre, uma vez que antes estive sempre bastante envolvido em programas da instituição que me tomavam várias noites por semana.
8) Sua esposa teve os mesmos questionamentos que você? Se não, como ela encarou suas reflexões e conclusões? Se teve, foi ao mesmo tempo que você?
Minha esposa veio junto, desde o comecinho. Conversamos bastante desde sempre e ela participou de todas as etapas de mudança na nossa caminhada com Jesus.
9) Na sua opinião, qual a importância e função da igreja evangélica hoje?
Isso é complicadíssimo de responder, porque a expressão ‘igreja evangélica’ já não significa absolutamente nada mais, e faz tempo. É uma bagunça tão grande, um forrobodó tão caótico, que já não tem significado nenhum. É Edir Macedo, Malafaia, Terranova, Rodovalho, apóstolos, bispos, profetas, curandeiros, milagreiros, manipuladores, caras-de-pau, safados... toda essa gente aí é ‘evangélico’. A função desses aí é enganar o povo e ganhar muito dinheiro isento de impostos. É construir seu impériozinho e ter uma porção de subordinados submissos beijando suas mãos. E esses caras crescem que nem capim porque anunciam um projeto de prosperidade e poder. O povo que os segue não faz a menor idéia de quem seja Jesus. Abraçam a esperança hedonista de poder e, para isso, vendem a alma. São enganados, mas enganados pela sua própria ganância. É triste, mas é o que é.
Só que tem também um monte de gente boa, esforçada e bem intencionada em instituições que se esforçam um bocado pra apontar pra Jesus e não pra si mesmas e fazer o bem ao próximo, e não construir um templo novo bonitão, acarpetado e cheiroso. Isso existe. Tá espalhado por aí. Cada vez mais raro, porque até esses aos poucos vão cedendo às tentações de crescimento e sucesso oferecidas pelo primeiro grupo. Mas sempre há uns guerreiros remanescentes por aí. E os caras também se chamam de ‘evangélicos’.
Enfim, a igreja evangélica é uma balbúrdia indefinível. Mais vale largar dela e seguir Jesus independente do lugar onde você esteja. E esse lugar pode até ser uma igreja evangélica, tudo bem. O importante é não permitir que a igreja instituição e todas as suas programações e demandas tomem o lugar do Cristo. É só seguir Jesus onde estiver. E se dois ou três forem junto, está ótimo.
Lucidamente na Trilha certa!
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