O profeta estava sentado num banco da praça quando ouviu o fuzuê que vinha pela rua 15. Um amontoado heterogêneo de gente trazia um homem pelo braço enquanto gritava, desordenado, coisas como "mulambento, vagabundo, preguiçoso, vadio, põe numa kombi e leva de volta pro Paraná". Eram estudantes, bancários, comerciantes e empresários, homens e mulheres, velhos, novinhos e meia vida. Ainda gritavam quando alcançaram o banco da praça e largaram o homem aos pés do profeta que desencostou do banco, cruzou os braços e esperou calmamente a poeira baixar, vagando seus olhos pelos olhares enfurecidos do povo. Quando conseguiu silêncio, perguntou à multidão, "o que ele fez?", e o povo sentenciou, "é um vadio, um vagabundo que vem ninguém sabe de onde pra perambular por aí, sem emprego fixo". O profeta olhou para o homem caído a seus pés, inclinou-se um pouco mais na sua direção, apoiou as mãos sobre os joelhos e, feito remanso de rio, começou a conversa.
"Onde você mora?"
"Tenho casa não. Vivo vagando por aí. Quando gosto dum lugar, paro e fico até enjoar."
"E vive de quê?"
"De qualquer coisa. Tapo buraco, remendo pano, troco telha, arrumo jardim, concerto cerca. E ainda faço uns artesanatos ou fico tocando gaita e recitando meus poemas numa pracinha qualquer."
"Poemas e gaita é? Que legal. E sente falta de alguma coisa?"
"Essa vida é boa, mas sinto falta de companhia. É um caminho de liberdade, mas um caminho de solidão".
O profeta fez uns segundos de silencio, olhando fixo pro homem, depois fechou os olhos, apoiou as costas no encosto do banco enquanto ia enchendo o peito de ar, escorregou até a ponta do assento, esticou as pernas, cruzou as mãos atrás da cabeça, apontou o nariz pro céu e começou a assobiar uma canção de Gilberto Gil. A multidão que ainda estava eufórica e ansiosa, foi perdendo a paciência. A maior parte da plateia evadiu da praça resmungando e olhando pro relógio enquanto apressava o passo pra compensar algum atraso. Aos que ficaram até o fim da canção, o profeta falou muito mansamente, depois de um suspiro e olhando nos olhos de cada um.
"Conheço um outro homem que também vagava assim por aí, sem ter onde reclinar a cabeça. Dizia coisas próprias de um vagabundo, como não se preocupem com o dia de amanhã e basta a cada dia seu próprio mal". Suspirou fundo e concluiu "se algum de vocês se acha mais livre do que um desses dois homens, ou mais feliz, ou mais cheio de paz, então que mande vir a kombi que o levamos pra longe daqui". Em silêncio e lentamente, os poucos que ainda estavam lá foram dispersando, uns olhando para o chão, outros para algum ponto qualquer do infinito.
O profeta se abaixou, ajudou o homem a levantar do chão e caminhou com ele até o carrinho de acarajé da Dona Dora. "Me dê dois". Sentaram juntos no mesmo banco e o profeta, sorrindo, puxou o andarilho pra perto de si, num abraço forte e demorado, e lhe beijou a testa.
... e o andarilho tirou sua gaita do bolso e arriscou, "fogo eterno pra afugentar... como é mesmo? Assobia de novo."
ResponderExcluirE contam, que duas crianças que brincavam naquela praça viram um coral de anjos se ajuntarem ali e...
Legal.
ExcluirEu ia deixar um link pra música que eu tava imaginando (e não era "Palco"), mas deixei quieto pra cada um imaginar. Gostei da sua ;)
Cara, eu até me vejo no papel de andarilho, sem eira nem beira, vagando por aí (coisa de hippie, né?)...
ResponderExcluirMas no papel de profeta... não consigo me ver como profeta, curtindo a companhia do vagabundo, dando abraço, pagando acarajé...
Miserável homem que sou!
Eu imaginei essa:
ResponderExcluirEu tive um sonho
Que eu estava certo dia
Num congresso mundial
Discutindo economia
Argumentava
Em favor de mais trabalho
Mais emprego, mais esforço
Mais controle, mais-valia
Falei de pólos
Industriais, de energia
Demonstrei de mil maneiras
Como que um país crescia
E me bati
Pela pujança econômica
Baseada na tônica
Da tecnologia
Apresentei
Estatísticas e gráficos
Demonstrando os maléficos
Efeitos da teoria
Principalmente
A do lazer, do descanso
Da ampliação do espaço
Cultural da poesia
Disse por fim
Para todos os presentes
Que um país só vai pra frente
Se trabalhar todo dia
Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia
Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia
Que parecia
Um prelúdio bachiano
Um frevo pernambucano
Um choro do Pixinguinha
E no salão
Todas as bocas sorriram
Todos os olhos me olharam
Todos os homens saíram
Um por um
Um por um
Um por um
Um por um
Fiquei ali
Naquele salão vazio
De repente senti frio
Reparei: estava nu
Me despertei
Assustado e ainda tonto
Me levantei e fui de pronto
Pra calçada ver o céu azul
Os estudantes
E operários que passavam
Davam risada e gritavam:
"Viva o índio do Xingu!
"Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!
Viva o índio do Xingu!"
MARAVILHOSA LIÇÃO, QUERIDO. Linda mensagem irmanada com os andarilhos do Senhor, que colhem sementes onde Deus planta e plantam onde Deus aponta. Também acredito que já estive naquela praça bucólica, onde conheci minha profetiza, a minha Malu Valente. Naquele mesmo dia, eu soube que ela estaria comigo no Último, quando Aslam apagar as luzes deste mundo. Naquele dia também comemos acarajé, só que de um pajé amigo, que nos serviu "diet" (sem pimenta). Conversamos 4 horas seguidas, que mal pareceram 4 segundos, e ainda estamos juntos e caminhando todo weekend, ou pedalando pelas ruas de nossa Fortaleza. Que Ele te abençoe como tem nos abençoado, mesmo diante desta terrível estiagem que aumenta nossos desertos... (Abração do JV)...
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