19 de abril de 2012

Num banco de praça

O profeta estava sentado num banco da praça quando ouviu o fuzuê que vinha pela rua 15. Um amontoado heterogêneo de gente trazia um homem pelo braço enquanto gritava, desordenado, coisas como "mulambento, vagabundo, preguiçoso, vadio, põe numa kombi e leva de volta pro Paraná". Eram estudantes, bancários, comerciantes e empresários, homens e mulheres, velhos, novinhos e meia vida. Ainda gritavam quando alcançaram o banco da praça e largaram o homem aos pés do profeta que desencostou do banco, cruzou os braços e esperou calmamente a poeira baixar, vagando seus olhos pelos olhares enfurecidos do povo. Quando conseguiu silêncio, perguntou à multidão, "o que ele fez?", e o povo sentenciou, "é um vadio, um vagabundo que vem ninguém sabe de onde pra perambular por aí, sem emprego fixo". O profeta olhou para o homem caído a seus pés, inclinou-se um pouco mais na sua direção, apoiou as mãos sobre os joelhos e, feito remanso de rio, começou a conversa.

"Onde você mora?"
"Tenho casa não. Vivo vagando por aí. Quando gosto dum lugar, paro e fico até enjoar."
"E vive de quê?"
"De qualquer coisa. Tapo buraco, remendo pano, troco telha, arrumo jardim, concerto cerca. E ainda faço uns artesanatos ou fico tocando gaita e recitando meus poemas numa pracinha qualquer."
"Poemas e gaita é? Que legal. E sente falta de alguma coisa?"
"Essa vida é boa, mas sinto falta de companhia. É um caminho de liberdade, mas um caminho de solidão".

O profeta fez uns segundos de silencio, olhando fixo pro homem, depois fechou os olhos, apoiou as costas no encosto do banco enquanto ia enchendo o peito de ar, escorregou até a ponta do assento, esticou as pernas, cruzou as mãos atrás da cabeça, apontou o nariz pro céu e começou a assobiar uma canção de Gilberto Gil. A multidão que ainda estava eufórica e ansiosa, foi perdendo a paciência. A maior parte da plateia evadiu da praça resmungando e olhando pro relógio enquanto apressava o passo pra compensar algum atraso. Aos que ficaram até o fim da canção, o profeta falou muito mansamente, depois de um suspiro e olhando nos olhos de cada um.

"Conheço um outro homem que também vagava assim por aí, sem ter onde reclinar a cabeça. Dizia coisas próprias de um vagabundo, como não se preocupem com o dia de amanhã e basta a cada dia seu próprio mal". Suspirou fundo e concluiu "se algum de vocês se acha mais livre do que um desses dois homens, ou mais feliz, ou mais cheio de paz, então que mande vir a kombi que o levamos pra longe daqui". Em silêncio e lentamente, os poucos que ainda estavam lá foram dispersando, uns olhando para o chão, outros para algum ponto qualquer do infinito.

O profeta se abaixou, ajudou o homem a levantar do chão e caminhou com ele até o carrinho de acarajé da Dona Dora. "Me dê dois". Sentaram juntos no mesmo banco e o profeta, sorrindo, puxou o andarilho pra perto de si, num abraço forte e demorado, e lhe beijou a testa.

5 comentários:

  1. ... e o andarilho tirou sua gaita do bolso e arriscou, "fogo eterno pra afugentar... como é mesmo? Assobia de novo."

    E contam, que duas crianças que brincavam naquela praça viram um coral de anjos se ajuntarem ali e...

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    1. Legal.

      Eu ia deixar um link pra música que eu tava imaginando (e não era "Palco"), mas deixei quieto pra cada um imaginar. Gostei da sua ;)

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  2. Cara, eu até me vejo no papel de andarilho, sem eira nem beira, vagando por aí (coisa de hippie, né?)...
    Mas no papel de profeta... não consigo me ver como profeta, curtindo a companhia do vagabundo, dando abraço, pagando acarajé...
    Miserável homem que sou!

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  3. Eu imaginei essa:


    Eu tive um sonho
    Que eu estava certo dia
    Num congresso mundial
    Discutindo economia

    Argumentava
    Em favor de mais trabalho
    Mais emprego, mais esforço
    Mais controle, mais-valia

    Falei de pólos
    Industriais, de energia
    Demonstrei de mil maneiras
    Como que um país crescia

    E me bati
    Pela pujança econômica
    Baseada na tônica
    Da tecnologia

    Apresentei
    Estatísticas e gráficos
    Demonstrando os maléficos
    Efeitos da teoria

    Principalmente
    A do lazer, do descanso
    Da ampliação do espaço
    Cultural da poesia

    Disse por fim
    Para todos os presentes
    Que um país só vai pra frente
    Se trabalhar todo dia

    Estava certo
    De que tudo o que eu dizia
    Representava a verdade
    Pra todo mundo que ouvia

    Foi quando um velho
    Levantou-se da cadeira
    E saiu assoviando
    Uma triste melodia

    Que parecia
    Um prelúdio bachiano
    Um frevo pernambucano
    Um choro do Pixinguinha

    E no salão
    Todas as bocas sorriram
    Todos os olhos me olharam
    Todos os homens saíram

    Um por um
    Um por um
    Um por um
    Um por um

    Fiquei ali
    Naquele salão vazio
    De repente senti frio
    Reparei: estava nu

    Me despertei
    Assustado e ainda tonto
    Me levantei e fui de pronto
    Pra calçada ver o céu azul

    Os estudantes
    E operários que passavam
    Davam risada e gritavam:
    "Viva o índio do Xingu!

    "Viva o índio do Xingu!
    Viva o índio do Xingu!
    Viva o índio do Xingu!
    Viva o índio do Xingu!"

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  4. MARAVILHOSA LIÇÃO, QUERIDO. Linda mensagem irmanada com os andarilhos do Senhor, que colhem sementes onde Deus planta e plantam onde Deus aponta. Também acredito que já estive naquela praça bucólica, onde conheci minha profetiza, a minha Malu Valente. Naquele mesmo dia, eu soube que ela estaria comigo no Último, quando Aslam apagar as luzes deste mundo. Naquele dia também comemos acarajé, só que de um pajé amigo, que nos serviu "diet" (sem pimenta). Conversamos 4 horas seguidas, que mal pareceram 4 segundos, e ainda estamos juntos e caminhando todo weekend, ou pedalando pelas ruas de nossa Fortaleza. Que Ele te abençoe como tem nos abençoado, mesmo diante desta terrível estiagem que aumenta nossos desertos... (Abração do JV)...

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