Elmiro caminhava sozinho no ermo da floresta escura que ladeava sua casa. A luz trêmula do lampião queimava banha de porco iluminando discretamente o caminho e temperando-o com o aroma pesado da gordura queimada. Era pouco óleo e Elmiro esperava alcançar os limites da floresta antes da luz extinguir-se. O som que ecoava no mato era vibrante, vivo, intenso e tenso.
A chama se apagou quando o velho já avistava adiante o azulado da luz da lua refletindo difuso no nevoeiro que lambia sereno o pasto verde do seu sítio. Elmiro parou no limite da floresta, sentou no tronco seco do cambucá que fora derrubado a machado pelo seu avô para fazer os moirões que cercavam a bicharada e permaneciam lá, firmes, há cinco décadas. Sentado na beira do tronco, ergueu a cabeça lentamente para deleitar-se na visão que lhe enlevava a alma.
Viajou os olhos solenemente pelas estrelas, constelações, nebulosas, planetas e meteoros enquanto sentia a brisa gelada e úmida da noite molhar sua face sulcada por um emaranhando incrível de rugas profundas. As gotas do orvalho escorriam lentamente pelos labirintos de seu rosto. Agora de olhos fechados, Elmiro lembrava do luar incrível que vira no ano anterior quando tropeirava solitário pelas serranias de Campos Novos. Salgou o orvalho com lágrimas pela simples lembrança do vapor azulado subindo do corpo quente de seu cavalo, dançando à luz do luar em movimentos imponderáveis, naquela noite belíssima.
O cheiro do café já alcançava a beirada da floresta. Era hora de aquecer-se em casa.
***
A partir do século 18, e de forma definitivamente empolgante, o iluminismo fez nossos olhos se abrirem para um universo novo de conhecimento. Os misticismos antigos foram um a um sendo iluminados pela luz das novas e incontestáveis descobertas. E viu o homem que isso era bom, diria com muito acerto a versão humanista da poesia de gênesis.
Um universo de escuridão se dissipa em um clique. Se não for no interruptor, será no google. E a luz deitará sobre nós. E todas as trevas serão dissipadas.
Mas a luz que a ciência nos lançou apagou as estrelas. Nos movimentos frenéticos de nossos centros urbanos não há mais espaço para nebulosas, estrelas cadentes e vapores azuis dançando ao luar. Nem para os mistérios que essas visões evocam. Nossas lâmpadas iluminam o ambiente que vivemos, e isso é uma bênção, mas apagam para sempre os mistérios indecifráveis da noite e os movimentos que suas asas suaves embalavam na alma do homem.
Um amigo me fez lembrar da frase de Carl Sagan: É melhor saber do que crer. Saber é bom, disso ninguém tem dúvida, mas jamais saberemos o suficiente. Crer e saber podem andar juntos, de mãos dadas, e dançar nas noites escuras e geladas, sob a luz do luar.
Só há luz, se existirem trevas... e vice-versa!
ResponderExcluirTexto muito inspirador. Essa atmosfera de mistério e de solitude é algo extremamente rara nos dias atuais O fato é que esse racionalismo cartesiano não deixa muito espaço para as sutilezas do desconhecido e para os mistérios da alma e do universo. A luz da razão parece ter ofuscado nossa visão das verdades intangíveis e submetido o olhar às superficialidades da existência.
ResponderExcluirUma pena isso não? Abraço Rafael.
ExcluirTuco, lendo seu texto lembrei-me dos anões-cabeça-dura de Nárnia.
ResponderExcluir"– Aslam – disse Lúcia, entre lágrimas –, será que você não podia. . por favor. . faça algo por estes pobres anões. .
– Minha querida – disse Aslam –, vou mostrar-lhe tanto o que eu posso quanto o que eu não posso fazer.
Aproximando-se dos anões, Aslam deu um leve rugido: leve, mas mesmo assim fez o ar vibrar. Os anões, porém, disseram uns aos outros:
– Escutaram só? Deve ser a turma do outro lado do estábulo. Estão tentando nos assustar. Devem ter feito esse barulho com algum tipo de máquina. Não vamos nem dar bola. Desta vez não nos enganam mais.
Aslam ergueu a cabeça e sacudiu a juba. No mesmo instante, um maravilhoso banquete apareceu aos pés dos anões: tortas, assados, aves, pavês, sorvetes e, na mão direita de cada um, uma taça de excelente vinho. Mas de nada adiantou. Eles começaram a comer e a beber com a maior sofreguidão, mas notava-se claramente que nem sabiam direito o que estavam degustando. Pensavam estar comendo e bebendo apenas coisas ordinárias, dessas que se encontram em qualquer estrebaria. Um deles disse que estava comendo capim; outro falou que tinha arranjado um pedaço de nabo velho; e um terceiro disse que havia achado uma folha de repolho cru. E levavam aos lábios taças douradas com rico vinho tinto, dizendo:
– Puááá! Muito bonito! Beber água suja, tirada do cocho de um jumento! Nunca pensei que chegássemos a tanto!
Mas logo cada anão começou a desconfiar de que o outro havia conseguido algo melhor que ele, e daí começaram a se agarrar e a discutir, e a briga foi ficando cada vez mais feia, até que, em poucos minutos, todos estavam engalfinhados numa verdadeira luta livre, e todas aquelas iguarias espalharam-se por seus rostos e roupas e esparramaram-se pelo chão. Mas quando finalmente se sentaram de novo, cada qual esfregando seu olho roxo ou o nariz sangrando, começaram a dizer:
– Bem, pelo menos aqui não há nenhuma trapaça. Não deixamos ninguém nos levar no bico. Vivam os anões!
– Viram só? – disse Aslam. – Eles não nos deixarão ajudá-los. Preferem a astúcia à crença. Embora a prisão deles esteja unicamente em suas próprias mentes, eles continuam lá. E têm tanto medo de serem ludibriados de novo que não conseguem livrar-se."
C.S. Lewis, "A Última Batalha"
É. O Aslam sabe o que diz. ;)
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