"Eu é que preciso de sua ajuda agora Zé. Você precisa me levar até sua casa. O lugar onde você acorda todas as manhãs. O quarto iluminado da alvorada, ou o quarto escuro do entardecer. Precisamos chegar lá, nem que isso leve mais alguns dias."
"Eu sei de onde vim Abud. É só correr em linha reta, sentido oposto ao poente. Acho que caminhei duas horas até a esquina onde nos encontramos. É só andar duas horas de volta." E saíram os dois em silêncio, na noite escura, pela rua monótona e cinza, procurando por uma casa entre as milhares de casas idênticas que ladeavam a avenida. Não havia relógio por ali e, portanto, seria preciso imaginar o tempo passando enquanto os passos ligeiros e decididos iam ecoando nas paredes das casas.
Zé Augusto caminhava apreensivo, olhando repetidas vezes para Abud, tentando entender quem era ele, como o havia encontrado, o que fazia nas suas memórias, mas o homem simplesmente seguia em frente, em silêncio. Tentou formular perguntas, mas começou a sentir-se tonto e confuso e os flashes estranhos da memórias do dia voltaram a estalar na sua mente. Abud percebeu algo, agarrou-o firme pelo braço e seguiu conduzindo-o. "Vamos Zé. Toca em frente. Não é hora de lembrar de nada." E apressaram o passo, enquanto uma garoa fina começava a cair no meio da noite escura e fria. "Zé, presta atenção. Você vai acabar apagando, vai acordar no mesmo quarto claro de sempre, vai sair do quarto e ser engolido pela luz. Quando a luz cegá-lo por completo você terá entrado no lugar onde nunca deveria ter entrado. E vai ser uma loucura, Zé. Você sabe. O trabalho, os contratos, as festas, a grana, as mulheres, aquele monte de gente em volta, puxando o saco, sorrindo sempre. Aquilo é o inferno Zé. Não aqui. Lá. É só não voltar mais cara." A voz de Abud ia se afastando enquanto os flashes de memória inundavam a mente de Zé Augusto. Ele tentava ouvi-lo, tentava concentrar-se na rua, nos passos rápidos, nas casas monótonas, na garoa, mas sentia frio e um frio cada vez mais intenso. As gotas finas da madrugada pareciam agora agulhas incandescentes, queimando e rasgando sua pela em linhas finas e profundas. E os flashes eram mais intensos e reais. E eram secos, e alegres, e festivos. E havia o sol, e as ruas eram claras e uma brisa refrescante soprava sempre. Zé sentia-se lá e as feridas causadas pela garoa eram curadas pela brisa morna da memória. E havia gente por todo lado, correndo em sua direção, festejando enquanto gritavam: "ele voltou, ele voltou."
----------
Continua...
Acompanhe a série:
No inferno | 01
No inferno | 02
No inferno | 03
No inferno | 04
No inferno | 05
No inferno | 06
No inferno | 07
0 comentários:
Postar um comentário