1 de novembro de 2013

Mensagem à poesia

Para Léo, Gito, Tony, para toda rapaziada do Caminho Nações e todos aqueles
"a quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante"


----------

De Vinícius de Moraes
Rio de Janeiro , 1954



Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas,
E há legiões delas carpindo a saudade de seus homens;

Contem-lhe que há um vácuo nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema;

Contem-lhe que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares,
E é preciso reconquistar a vida.
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado — não a magoem... — que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes,
Que meus ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem deixar intimidar,
Que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora;
Digam-lhe, no entanto que sofro muito,
Mas não posso mostrar meu sofrimento aos homens perplexos;
Digam-lhe que me foi dada a terrível participação,
E que possivelmente deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.

Se ela não compreender, oh! procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu;
Mas digam-lhe que, no fundo, tudo o que estou dando é dela,
E que me dói ter de despojá-la assim, neste poema;
Que por outro lado não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado há fome e mentira;
E um pranto de criança sozinha numa estrada junto a um cadáver de mãe;

Digam-lhe que há um náufrago no meio do oceano,
Um tirano no poder, um homem arrependido;
Digam-lhe que há uma casa vazia com um relógio batendo horas;

Digam-lhe que há um grande aumento de abismos na terra,

Há súplicas, há vociferações, há fantasmas que me visitam de noite
e que me cumpre receber,
Contem a ela da minha certeza no amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre;
Por isso, peçam-lhe que tenha paciência,
Que não me chame agora com a sua voz de sombra;
Que não me faça sentir covarde de ter de abandoná-la neste instante

Em sua imensurável solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí.
Em meu coração vive a sua imagem pertencida,
E nada direi que possa envergonhá-la.
A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim.
Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz.
Minha paixão de homem resta comigo;
Minha solidão resta comigo;
Minha loucura resta comigo.
Talvez eu deva morrer sem vê-la mais,
Sem sentir mais o gosto de suas lágrimas,
Olhá-la correr livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia.
Digam-lhe que é esse o meu martírio;

Que às vezes pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade
E as poderosas forças da tragédia abastecem-se sobre mim,
E me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação estática
Num amor cheio de renúncia.
Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.

Um comentário: