Era um fim de tarde rubro. Com quatorze anos cheios, frequentava a sétima série da Escolinha Tia Paula. A camisa do uniforme da rapaziada do ginásio ostentava o nome do grêmio estudantil Victor Ferreira do Amaral, para evitar o vexame de trazer no peito adolescente o nome verdadeiro daquele colégio. Estudei lá desde o maternal e as professoras mais antigas me chamavam pelo apelido de família que hoje já virou nome.
A dona Selva não era mais a diretora e o elegante badalar do sino, acionado manualmente por uma corrente do lado de fora da torre da capela, havia sido definitivamente substituído por um ruído eletrônico vulgar.
Eu acabara de me desfazer da velha Monareta, da qual havia sacado os para-lamas e serrado o bagageiro, na tentativa de lhe dar um ar ousado de bicicross. Com ela eu havia quebrado meu pulso numa rampa da pista de terra atrás do riozinho, quando ainda fazia fisioterapia para dar mobilidade ao braço esquerdo, enrijecido pela fratura do cotovelo num jogo de futebol de rua. Agora, sem ela, teria que voltar para casa de ônibus.
O Marcelo, aluno novo, grande e forte, havia me jurado de morte por algum motivo banal que já não me recordo, e ir embora sozinho, quando soava aquele ruído eletrônico vulgar, era uma insanidade necessária e terrível. Meu irmão mais velho (e em situações como essa, um irmão mais velho assume a forma de um prodigioso herói) já migrara para o segundo grau no CEFET e o caminho da segurança do portão da Escolinha Tia Paula até o longínquo ponto de ônibus era floresta escura, deserto inclemente, assombrado, coberto com o manto terrível do silêncio.
Iniciei o percurso agarrado à minha mochila como se guardasse ali alguma arma secreta, como se abrindo o zíper pudesse mergulhar para dentro dela como o gato Félix e ressurgir à salvo no meu quarto, sentindo cheiro de pãozinho quente com manteiga. Mas era uma mochila comum abrigando livros, e o Marcelo poderia estar atrás de qualquer arbusto, de qualquer muro, de qualquer árvore, de qualquer carro estacionado. Ou pior, o miserável poderia estar no ponto de ônibus e eu jamais conseguiria entrar na segurança do Santa Quitéria a caminho de casa.
Passei por todos os arbustos, carros e muros e cheguei ao ponto de ônibus. Sentei no meio-fio aguardando a chegada da carruagem amarela que me salvaria daquela angústia e só então observei a barra escarlate que manchava o horizonte e fazia da cidade um perfil negro e plano de telhados e copas de árvores. Os pardais festejavam o fim do dia numa algazarra desgovernada e a grilarada começava a entoar os hinos secretos subliminares em seu vertiginoso roçar de pernas, enquanto uma formiga carregava silenciosa e obstinada uma graveto enorme, escalando incansavelmente a barra da calça do meu uniforme. Um vento fresco secava o suor da minha apreensão e sussurrava as cantigas de um cassete do grupo Elo e, de fato, naquele instante, me sentia tão calmo, sereno e tranquilo que quase não percebi a chegada do ônibus. Só me dei conta quando ouvi uma voz conhecida: "levanta magrelo! O ônibus chegou". Era o Marcelo que, descobri naquele dia, morava na Santa Quitéria.
E o final? E o final??? Conta o que aconteceu, pelamor! Muito legais seus textos-reminiscências, Tuco! Abrax!
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