24 de abril de 2015

Chuck Norris e a Bíblia

Tenho um amigo bastante improvável. Já tivemos algo em comum: ambos subíamos montanhas e subimos juntos muitas delas. Mas o tempo passou, as montanhas ficaram para trás e restou-nos apenas, como fio que contém as miçangas da amizade, o passado. Tudo que diz respeito ao presente parece nos colocar em posições opostas. E meu amigo é daqueles que gosta de contrariar publicamente, expor sua opinião e desmontar os argumentos que se opõe à ela. É um lutador. Sempre foi. Desde os tempos de montanha, quando se enfiou em roubadas que sempre almejei e nunca alcancei, simplesmente porque não tenho essa gana, essa birra toda que caracteriza meu amigo.

Uma das discussões que tivemos começou com a redução da maioridade penal, projeto que lamento existir e contra o qual me posiciono com uma veemência que me é rara, e terminou com uma comparação tão comum quanto equivocada dessa lei com o Deus sanguinário que habitaria as páginas do Velho Testamento. Meu amigo sabe que sou cristão, desses que leem a Bíblia, fazem oração e se reúnem com outros para compartilhar as incertezas da fé. Ele, evidentemente, é um ateu militante. Acontece que, para defender seu argumento favorável à redução da maioridade frente a um cristão, ele apelou para um dos mais improváveis argumentos, tão improvável quanto nossa amizade: se sou crente e tenho um bíblia toda sublinhada na minha mesa de cabeceira, devo ser favorável à redução da maioridade penal, porque a bíblia (pelo menos a maior parte dela, o chamado velho testamento) seria um "livro que tem sangue no zóio" e apresentaria um "deus mais vingativo que qualquer Chuck Norris". Me parece que a infeliz bancada BBB (Bíblia, Boi e Bala) no congresso concorda com meu amigo.

"Um deus mais vingativo que qualquer Chuck Norris"

A comparação com Chuck Norris é culpa minha. Já havia usado contra ele o argumento de que a justiça que todo mundo quer foi apreendida nos filmes de ação de Hollywood. 87% da população brasileira é favorável à redução, dizem algumas pesquisas. É muito Chuck Norris, penso eu. A justiça que a imensa maioria quer fundamenta-se no roteiro base de qualquer daqueles filmes, e são milhares, em que o mocinho, no final, todo arrebentado, dispara um tiro certeiro na cabeça do vilão medonho e, no mesmo instante, somos todos inundados de profundo sentimento de alívio e paz. Justiça foi feita. Está tudo bem. Vamos dormir.

Meu amigo disse que o Deus do Velho Testamento é mais vingativo que Chuck Norris e sei que existe uma série de versículos que atestam esse pensamento. Argumentei que é preciso avaliar o texto dentro de seu contexto histórico, de como a sociedade resolvia as coisas na época em que o texto foi escrito. E foi nesse momento que chegamos no ponto mais interessante da discussão, que foi também o instante em que, covardemente, pulei fora dela. É que esse negócio de discutir em pequenos e rápidos argumentos nas áreas de comentários de facebuques e coisas afins me dá um desânimo incrível. Mas resolvi usar o espaço obsoleto desse blog para organizar meu pensamento. O argumento de meu amigo para se opor à minha defesa de que o texto deve ser analisado dentro do contexto foi: "Que deus é este que escreve um livro que era para ser um guia para as pessoas e no entanto requer que as pessoas para entendê-lo façam verdadeiros cursos? Não seria mais justo ser direto?". É realmente curioso que para entender a bíblia o interessado precise ser um doutor em teologia e saber grego e hebraico. E meu amigo está certo, caso o interesse de alguém seja entender a bíblia. É um livro complexo pra caramba, escrito por cerca de 40 autores diferentes em um período provável de 1600 anos sendo que os livros mais antigos têm entre 3 e 4 mil anos de idade. Alguém quer entender essa parada sem estudar?

"Que deus é este que escreve um livro que era para ser um guia para as pessoas e no entanto requer que as pessoas para entendê-lo façam verdadeiros cursos?"

Entretanto, a questão da qual não quero me desviar, é que existe um evidente distinção entre entender a bíblia e ser um seguidor do rabi judeu que inaugurou o que, bem posteriormente, passou a ser chamado de cristianismo. Existem, aliás, dois pontos que, apesar de amplamente utilizados, são incrivelmente falhos no argumento apresentado por meu amigo. Pelo menos do ponto de vista da fé cristã, ou seja, a fé que deriva do judeu chamado Jesus de Nazaré. Primeiro, supor que deus escreveu um livro. Segundo, que o livro foi escrito para ser um guia. O próprio conceito de 'um livro' já é um tanto equivocado, umas vez que a bíblia é uma compilação de cerca de 70 manuscritos (66 para os protestantes, 73 para os católicos), mas beleza, até dá para tratá-la como um livro feito de livros. O que não dá é para imaginar que um discípulo de Jesus é um cara chamado para seguir um livro escrito por Deus, mesmo que esse livro seja o livro que todo cristão tem (ou deveria ter) na sua mesa de cabeceira, todo gasto, anotado, sublinhado.

As religiões tem seus livros sagrados que servem de guia, sem dúvida. A Torá do judaismo, o Alcoorão do islamismo, o Vedas, o Bhagavad Gita e mais alguns do hinduísmo e assim por diante. Oficialmente a bíblia deve aparecer como livro sagrado e guia do cristianismo, mas essa é uma ideia que não passava na cabeça do sujeito que propôs essa nova e inusitada jornada de fé que cristalizou-se nisso que hoje conhecemos como cristianismo. A proposta do Cristo era ser ele nosso guia, não um livro, seja qual for. Moisés reuniu um bando de apátridas, apontou para Javé e redigiu a Torá. Maomé teve uma visão, apontou para Alá e redigiu o Alcoorão. Jesus apontou para si e não redigiu bulhufas. Não tivesse sido ele o suprassumo do amor, da humildade e de tudo aquilo que se pode ainda hoje chamar universalmente de virtude, teria de ser considerado, por aquilo que disse acerca de si, o rei do arrogantes e prepotentes ou um completo demente, mestre dos desvairados.

"A proposta do Cristo era ser ele nosso guia, não um livro, seja qual for"

Para alívio dos que não querem estudar teologia, aprender grego e hebraico e sair por aí compreendendo todos os detalhes da complexa bíblia cristã, a fé proposta pelo Cristo não exige nada disso de ninguém. "Se alguém quer vir atrás de mim, pegue sua própria cruz e me siga. Eu sou o caminho. Basta ao discípulo ser como o mestre." São palavras assim que saem da boca do rabi que ousou resumir a lei toda em uma só - a lei do amor. Seria evidentemente menos comprometedor aprender grego e hebraico do que seguir Jesus, e talvez por isso os teólogos estudem tanto ou eu mesmo faça tantas anotações nas páginas gastas da minha bíblia. Isso não é uma desculpa para parar de lê-la ou para desprezá-la, é claro. Não jogue sua bíblia fora. É um livro belíssimo e riquíssimo. Tem absolutamente tudo a ver com nossa cultura e lê-la é ler parte de sua própria história, já que todo o mundo ocidental está irredutivelmente submerso em suas páginas. Ela é repleta de sabedoria, beleza e poesia. Jamais esqueça, porém, que há sim um guia a ser seguido, mas não é um livro e sim uma pessoa. Que a Palavra de Deus não é outra senão o Verbo encarnado em Cristo. Se é terrível para você ler aquele livro todo, atenha-se a leituras e releituras simples e dedicadas das cerca de 20 páginas de um dos evangelhos. É o suficiente para transformar e comprometer sua vida inteira. "Terrível coisa é estar sozinho com o Novo Testamento", dizia Kierkegaard. Se depois quiser ir além, e eu o aconselho que vá em frente, mas filtre tudo que ler nas tramas resultantes da leitura dedicada do evangelho e não restará espaço para Chuck Norris.

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Eu lhe recomendo ler tudo que Kierkegaard tinha a dizer sobre a leitura da bíblia na parte de sua Provocação sarcasticamente intitulada Morte aos Comentaristas.

3 comentários:

  1. Encaixou como luva nuns diálogos que tenho tido com alguns ex-crentes. Batem na velha tecla do deus da Bíblia, e eu não consigo faze-los entender que não sigo Bíblia alguma, nem deus algum: sigo (ou tento, ao menos) seguir o homem de Nazaré. Blz!!!

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  2. Anônimo11:53 PM

    Nossa que boa percepção acerca do desenvolvimento da fé cristã, as vezes parece que Deus virou um livro, não uma pessoa.

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  3. Entendo perfeitamente a tua idea e até concordo. A questão Tuco é que essa ideia está baseada em um estudo profundo e teológico da Bíblia. A tua ideia, está baseada no Jesus Bíblico. A questão é que é complicado para uma pessoa aceitar essa simplicidade tão profunda. Muitas pessoas passam a vida estudando a Bíblia, como é o teu caso, e depois de muito tempo compreendem que tudo debaixo do sol é vaidade e que a mensagem de Jesus é tão simples e ao mesmo tempo tão profunda. Que o Cristianismo não é uma religião. O próprio Jesus estudou profundamente o livro sagrado Judeu, por isso era chamado de Rabi, os fariseus da época estudavam o mesmo conteúdo que estudou Jesus. Porém tinham um percepção equivocada. É o mesmo acontece hoje em dia... A bancada cristã que apoia a redução da maior idade penal estudou a mesma Biblia que tu, e tem um visão completamente diferente... A questão é... Quando uma pessoa tem um encontro transformador com Jesus, como foi o caso de Paulo de Tarso, todo fariseismo cai por terra, e o ser humano sofre uma transformação. O problema não está na Bíblia, está na falta de percepção da mensagem de Cristo, mensagem está registrada na Bíblia. Não queremos aceitar a simplicidade de ser cristão , porque preferimos o controle da religiosidade cheia de dogmas e requisitos.

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