20 de outubro de 2022

Você tem medo de quê?


É fácil de perceber e difícil de admitir a onda de medo que assombra o cristão sincero e penitente nos últimos anos. Fácil de perceber porque escancarado na boca e no gestual de uma multidão deles. Desde o surgimento da mamadeira de piroca os medos não param de se amontoar ao redor do crente devoto. Difícil de admitir porque João, o discípulo amado, já nos havia revelado que “o perfeito amor lança fora todo medo”

O leitor crente que possa vir a ter acesso a esse texto deve lembrar-se do dia em que conheceu Jesus de Nazaré, não o personagem da historinha ou da cultura ocidental, mas o Filho do Deus vivo. Creio que a sensação poderia ser descrita como a de uma criança pequena, perdida num Shopping Center, apavorada no caos entre as tantas pernas desconhecidas, que é subitamente encontrada pelo pai (ou mãe) que a agarra em seu braços e aninha no colo. Alcançado pelo amor perfeito, o medo todo vai pro beleléu. Foi assim que tudo começou na vida de um enorme número de cristãos. Mas, infelizmente, não é assim que prossegue.

Jesus disse que veio inaugurar um novo Reino. O reino da Graça veio nos salvar de um outro reino - o da Lei. O reino da graça só existe no ambiente do amor. O da Lei no ambiente do medo. No amor não há medo assim como na graça não há lei (ou há uma só lei - a do amor). E eu me pergunto o que leva o cristão comum a abandonar a experiência redentora do amor para afogar-se  no lago lamacento do medo? Pois não é isso que estamos vendo acontecer em velocidade e intensidade aterradores?

Graça e amor são libertadores porque nos fazem livres. Mas liberdade é coisa com a qual não nos acostumamos facilmente. O passo seguinte à redenção pela Graça é a crise de abstinência de Lei. A solução pra crise é um retorno lento e gradual para o ambiente do medo a partir da manipulação religiosa da Lei da qual havíamos sido libertos. Ou, mais recentemente, a manipulação política. Porque o horror é que o grupo político que nos governa hoje percebeu essa crise de abstinência e passou a disseminar todo tipo de medo bizarro para cooptar para si os fiéis em processo de migração da graça pra lei, do amor pro medo. Estamos há anos debaixo de uma terrível avalanche de mentiras. Uma fábrica de fantasmas. Esse é o ponto a que chegamos: o que move o crente não é o amor que sonha alimentar famintos, cuidar de doentes, vestir nus, acolher estrangeiros, visitar prisioneiros (Mt 25), mas o medo do comunismo, do gay, do banheiro coletivo, da mamadeira de piroca, do aborto, da perversão, do ataque à família. 

A manipulação do medo não é novidade. É promovida pela religião desde que religião houve. E também pela política. Mas acredito que desde o nazi-fascismo essa coisa não acontecia de forma tão descarada e eficiente. O medo é um poder devastador. Quem está apavorado faz qualquer coisa. E é isso que estamos vivendo. Parentes e amigos babando ódio e violência, berrando impropérios, defendendo horrores, fazendo vista grossa para desumanidades, desejando o extermínio do outro, do diferente, armando-se até os dentes, aceitando com naturalidade a devastação de povos e florestas. Tudo fruto do medo. Medo de fantasmas criados pra manipular.

Será ainda preciso um grande esforço pra desfazer esse estrago. Mas o caminho a ser percorrido nesse esforço de reconversão já está escrito: 

“Meus queridos amigos, não creiam em tudo que ouvem. Examinem cuidadosamente o que os outros dizem. Nem todo mundo que fala de Deus vem de Deus. Há muitos pregadores mentirosos mundo afora. (...) Deus é amor. Quando passamos a habitar plenamente no amor, vivendo uma vida de amor, vivemos em Deus e Deus vive em nós. Assim o amor tem o controle da casa, fica à vontade e amadurece em nós (...) e não há mais espaço para o medo. Pois o perfeito amor expulsa o medo” (1 Jo 4).

Por hora é preciso seguir firme na luta e na certeza de que o amor vencerá o medo. Porque o amor sempre vence.


Imagem: Dante e Virgilio
William-Adolphe Bouguereau - 1850
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