29 de abril de 2013

Fábulas (1)

1. Uma lenda de carne e osso

O que me choca no pensamento ateu não é que Deus não exista, mas que não seja possível acreditar em fábulas. O raciocínio ateu arremessa toda fantasia, toda história de fadas, todo conto fantástico no limbo da bobagem. Nenhuma fábula aconteceu de fato nem jamais acontecerá, é o veredito final decorrente do ateísmo (ou mesmo das formas mais radicais de liberalismo teológico). Nossa história resume-se, desde sempre e para sempre, em matemática, química e física. Os milênios de histórias, de lendas, de horror e assombro diante do imponderável sempre à espreita, pronto a materializar-se, são desprezados como criancisse, ainda que respeitosamente, ainda que com carinho e nostalgia.

Talvez seja necessário frisar que não estou aqui em uma cruzada para me opor ao ateu, muito menos para converte-lo. Entre as muitas formas de fé que desenvolvemos, a do ateu está certamente entre as mais respeitáveis. É evidente que devemos deixar de fora os ateus militantes e proselitistas, que chegam a ser tão desagradáveis quanto os religiosos carolas. O que quero dizer e não me canso de imaginar, é que cada lenda que surgiu na história foi absolutamente possível e até provável na mente e no coração daquele que a criou. Desejável, com certeza. Que no nascedouro de cada mito houve sempre a idéia subversiva e esperançosa de que ele um dia se realizasse. E não me canso de lastimar o eco que a ausência dessa esperança, decorrente de uma convicção naturalista irrevogável, pode fazer soar na vastidão desabitada de um coração humano.

O que faz do cristianismo um pensamento no mínimo interessantíssimo, é justamente a ousadia que o faz encher o peito e jogar na cara da humanidade, com uma convicção arrebatadora, que enfim, de fato, uma lenda vestiu-se de carne e osso. E não uma lenda qualquer, mas a matriz de todas elas. A redenção final materializou-se nas dimensões do espaço-tempo. Uma fábula soprada de boca em boca, de geração em geração, em rodas de fogueira nos fins de tarde, sob a luz da lua e o assobio das aves noturnas, em cada um dos cantos mais remotos do planeta, por séculos e séculos, das mais variadas formas, tornou-se real. O mito rasgou a sensatez ao meio e cravou-se nas nossas páginas de matemática, física e química, manchando-as para sempre com magia, milagre e esperança.

Sei que nesse momento alguém pode levantar-se no meio de meus estranhos argumentos e afirmar que, se for assim, se for preciso que algo se materialize, seria melhor crer em duendes e fadas de uma vez, do que apegar-se as histórias do Novo Testamento. Que entre um e outro, não haveria diferença alguma. Pois bem, meu amigo. Vá em frente. Já é um bom começo.

[ continua ]

3 comentários:

  1. Em primeiro lugar, é um privilégio estar aqui “falando” contigo, já que há tempos não trocamos uma ideia. Alguém de nosso convívio compartilhou este link no Facebook, e por isso, estou aqui!

    Já ouviu aquela do Carl Sagan, que diz que ele não quer acreditar, mas sim saber?

    Lá se vão alguns anos em que tenho estudado a questão de Deus, do Universo, da Vida, especialmente aqueles assuntos que me foram privados quando eu era uma ovelha de um rebanho qualquer. Porque nunca me contaram da evolução das espécies? Porque sempre me disseram que quem pensa diferente, inevitavelmente é do mal e indigno de um suposto céu? A ciência me mostrou que eu acreditava em Deus pelas razões erradas, e hoje sou muito feliz em saber o que sei, porque agora, embora sem todas as respostas, tenho muito mais claro meu papel no mundo. Mas isso não significa que eu seja superior a qualquer um, sequer que tenha posse da verdade.

    Mas enfim, vou fechar esta minha colaboração com uma provocação, talvez, inclusive, indo ao encontro a primeira frase do seu artigo, naquela questão que te choca. Durante meus estudos sobre essas coisas todas, caí num material do John Templeton Foundation, que fala das grandes questões da humanidade, cujo título é “A ciência tornou a crença em Deus obsoleta?”. Há um debate neste material, entre Groopman e Shermer, e uma pergunta digna de constar aqui:

    “Porque acreditar em um invisível e incompreensível deus que pode ou não responder nossas orações, que pode ou não curar nossas feridas, que pode ou não se preocupar conosco, que pode ou não sequer ter existido? Porque não celebrar a humanidade pelo o que somos, apenas isso, como seres naturais, sem mais nem menos, e abandonar o sobrenatural?”

    Abraços meu caro! Voltamos a conversar! Té!

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    1. Grande Vinicius. O privilégio é meu. Suas perguntas são ótimas. Porque os chefes dos rebanhos escondem tanta coisa das ovelhas? A maioria dos que crêem o fazem pelas razões erradas, suponho. É um outro lado da moeda.

      Opor-se à ciência é uma lástima infelismente muito presente nas religiões. A mim, no entanto, parece que quando tudo se reduz à matemática, física e química, boa parte do mundo perde a graça. Celebrar a humanidade pelo que somos e abandonar o sobrenatural é caminho que tenho pretendido trilhar acima de tudo. É, inclusive, caminho que Deus trilhou ao abandonar a si mesmo e tornar-se gente (http://atrilha.blogspot.com.br/2011/12/moita-onde-deus-se-esconde.html).

      Mas aqui com meus botões sinto uma alegria danada vez em quando, quando palpita em mim a esperança de que um mondo melhor e mais justo há de surgir um dia e contaminar tudo e todos, passado e futuro. E isso é uma loucura da fé, imagino, que me parece imensamente positiva e da qual não vejo porquê abrir mão.

      O outro problema que não sei se cheguei a tocar no texto, mas que talvez tenha me motivado um pouco, é a estranhesa que me causa ver a ciência tornando-se ela mesma uma espécie estapafúrdia de Deus. Me parece que "aquela busca terrível que nascia outrora da Lei de Deus e brota hoje da Ciência, não é mais do que a busca desesperada do indivíduo por seu próprio coração perdido, como o homem de lata no Mágico de Oz" (http://atrilha.blogspot.com.br/2011/02/validacao-do-obvio.html).

      Abração pra você, cumpadi.

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  2. Vá em frente, amigo, foi um excelente começo!!!

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