27 de maio de 2008

O menino de asas

Incríveis histórias medíocres de montanha - a série
(reedição de postagem antiga)

2.
Saímos cedo em direção à serra. Na moto ia o piloto com uma mochila de ataque na frente e eu, o carona, com uma cargueira abarrotada nas costas. Além de todo o equipamento de escalada, levávamos conosco dois parapentes e a ansiedade de poder subir uma montanha, alcançar o cume por uma parede de granito e descer lançando o corpo no abismo, contrariando a intolerante gravidade, voando feito um urubú. O parapente não pesa muito mas ocupa um volume desgraçado. O excesso de bagagens tornava difícil a condução da moto. Em cada curva fechada a buzina era acionada involuntariamente. Mas chegamos na base da montanha à salvo. O peso foi distribuído da melhor forma possível nas duas mochilas e iniciamos a caminhada até a parede escolhida.

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Lembro claramente a primeira vez que estivemos lá. Não conhecíamos nada sobre trilhas, montanhas, escaladas, vôos, serras e coisas afins. Havíamos feito um rapel aqui e ali, em barrancos e pedreiras, e imaginávamos como seria subir uma montanha de verdade. A única informação que tínhamos era onde pegar o ônibus e onde descer. A caminhada, dali pra frente, seria repleta do mais profundo mistério.

O tempo estava fechado e a densa neblina havia nos roubado toda a serra. Tudo que se via a partir de uns 20 metros à frente do nariz, era um lençol cinza e úmido do tamanho do mundo. Tomamos o cuidado de seguir, a uma distância segura, um grupo com mochilas e roupas de gente que parecia saber o que estava fazendo. Eles certamente tinham o mesmo destino que nós. Bastaria segui-los, mas os miseráveis andavam rápido demais e perdemos contato antes mesmo da primeira bica d´água. De qualquer forma, depois de muito sofrimento, sabe-se lá como, alcançamos o afamado cume.

Não vimos nada no trajeto todo. Nem uma minúscula e rápida janela se abriu. O lençol cinza permaneceu inclemente ao nosso redor e a umidade deixou-nos molhados e gelados. Mesmo assim, de forma absolutamente inexplicável, amamos aquele lugar. O cheiro, o vento, o frio, o cansaço, as pedras, paredes e mato. Todos os detalhes de tudo que conseguimos ver e tocar nos cativou para sempre. Voltamos lá mais de uma centena de vezes. E em muitas outras montanhas, vales e serras por aí.

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Espalhamos toda parafernália na base da parede - cadeirinhas, corda, costuras, paradas, freios e tudo mais. O clipe dos mosquetões rompia o silêncio enquanto a umidade da respiração condensava a cada expirar. A rocha lançava-se espetacularmente em direção ao céu. Avançamos lenta e delicadamente pela parede. O som das ferragens balançando, penduradas ao corpo sustentado apenas pela ponta dos dedos, e a brisa suave vinda do mais distante horizonte, tornavam o ambiente indescritivelmente assombroso. Nesses lugares, os sentimentos podem saltar em um segundo do mais puro êxtase ao mais angustiante horror. Levamos bem mais tempo do que o planejado para alcançar as rampas de pedra que dão acesso ao cume, por conta do volume de coisas que trazíamos.

Lá no alto, novamente apoiados em chão de verdade, começa mais uma vez o complexo ritual de manuseio dos equipamentos. Cordas e ferros deram lugar a uma ampla vela de nylon que haveria de nos servir de asa dentro de poucos minutos. O vento batia de frente no rosto, e o campo onde pousariamos estava trezentos metros abaixo de nós e talvez cerca de 2km à frente.

Passamos ainda alguns minutos contemplando a paisagem e ouvindo o vento enquanto saboreamos um pãozinho com queijo e algumas frutas. De onde estávamos, podiamos observar serras, cidades, rodovias, represas e a curvatura da terra na linha do horizonte.

Bastou um puxão firme nos tirantes que nos prendiam à vela. O próprio vento se incumbiu de inflar o tecido e trazê-lo sobre nossas cabeças. Três ou quatro passos à frente na direção do abismo que acabáramos de escalar foram suficientes. Nossos pés foram arrancados do chão e fomos conduzidos aos céus. As linhas cortavam o vento que assobiava seco e agudo. Os urubus passavam ao lado observando curiosos. A trilha, o mato e a moto tornaram-se grãos de areia. Todos pesando toneladas. Todos com raízes profundas. Correntes e bolas de ferro os prendem ao solo. Mas não nós. Não naquele dia. Não naquele instante. Rompemos os grilhões, as cadeias. No tornamos leves como pluma e, inacreditavelmente, ganhamos asas.

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Texto originalmente publicado no site A Montanha, do Vinícius.

Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas

2 comentários:

  1. É por isso que nunca consegui descrever o que a gente fazia (escaladas e vôos) como "esporte". Seria minimizar demais a coisa.

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  2. Também penei para acompaná-los quando fui pela primeira vez na mesma montanha. Vocês ainda nõ tinham ido muitas vezes e até chamavam o ônibus de "Campo Taborda". Minha salvação foi que a Pat estava conosco e levou a fama pelos pedidos insistentes de descanso. Eu, teimoso (e orglhoso) não dava o braço a torcer, mas adorava as paradas. Vocês, não menos teimosos, insistiam que a primeira parada deveria ser apenas na "pedra de descanso". Não me apaixonei como vocês pelos esportes de montanha, mas sempre gostei de nossas caminhadas, da natureza, da companhia, da paisagem e etc...

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