27 de junho de 2008

Às vezes falha

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

4.
Chegamos na estrada no meio da tarde. Era um corte estreito na densa floresta, que ligava a restinga litorânea à uma pequena cidade na beira da BR. Do ponto em que chegamos até a cidadezinha, teríamos ainda que percorrer cerca de 50 km.

Desde que saímos de casa, dois dias antes, o tempo permaneceu insistentemente chuvoso. A lama e água acumuladas nas botas sovaram os pés até a carne. Era inverno e o frio úmido castigava os ossos. Não tínhamos força nem disposição para percorrer esse trecho final. No dia seguinte, todos tínhamos que estar trabalhando.

Nos sentamos ofegantes na beira da estrada, sem ânimo para prosseguir e sem saber ao certo o que fazer. Foi quando surgiu no horizonte uma pequena mancha que acompanhava o desenho da estrada. Segundos depois ouvimos o ronco do motor de um caminhão. Não poderíamos de forma alguma deixar a chance escapar. Atravessamos as mochilas na rua e nos ajoelhamos sobre elas, com as mãos juntas em clamor. Sem outra alternativa, o motorista parou. Ficamos eufóricos quando o bom homem nos permitiu subir na caçamba, oferecendo-nos carona até quase a divisa com o Paraná. Rodamos 80 km na chuva, em uma gelada noite de inverno, do lado de fora do caminhão. Só quando paramos na frente de um hotelzinho, numa pequena cidade de beira de estrada, é que percebemos que um de nós estava desmaiado, com um princípio de hipotermia. O hotel era terrível, mas veio em excelente hora. Dormimos como anjos em três beliches socados em um quarto minúsculo, depois de um banho gelado no banheiro coletivo que ficava no fim do corredor.

Ainda de madrugada embarcamos rumo à correria de nossas vidas urbanas e todas as suas urgências e preocupações. Afinal de contas, estamos mesmo presos à roda-viva da produtividade, salvos apenas em alguns instantes, por saborosas escapadas.

Existe, no entanto, uma espécie de ser humano cada vez mais raro, que vive completamente alienado das urgências maiores que assolam a humanidade. Eles simplesmente ignoram os conflitos do oriente médio, a corrupção do senado, as loucuras do Bush, a incoerência do Lula, as oscilações da bolsa e, pasmem, até mesmo os resultados da última rodada do campeonato brasileiro. Vivem alheios às urgências que aprisionam a todos nós, civilizados, estudados, comprometidos com o futuro e responsáveis por ele. Esses estranhos homens vivem, simplesmente, um dia depois do outro. Sem nem darem-se conta disso, seguem o conselho de um judeu louco que andou por aí 2 mil anos atrás. Olham para a natureza e aprendem com ela a não se preocupar com o dia de amanhã. Conversar com esse tipo raro de gente é uma dádiva. Havíamos encontrado alguns desses sujeitos dois dias antes, no início da travessia. Com um deles, travamos um curto mas prodigioso diálogo.

Tínhamos previsto 3 dias para completar o trajeto. Hora para sair, hora para chegar, compromissos antes e depois. Os passos teriam que ser contados cuidadosamente, para completar cada etapa a tempo de encarar os compromissos posteriores. No final do primeiro dia, planejando o dia seguinte, cientes do que teríamos pela frente, fomos buscar informações com um dos moradores daquela minúscula vila ilhada por densa floresta. Sabíamos que, no dia seguinte, depois de caminhar longas horas, chegaríamos naquela pequena estrada de terra e que daquele ponto até a cidade mais próxima, teríamos terríveis 50 km para percorrer. O homem estava sentado sobre os calcanhares, na porta de sua casa, afiando sem o menor compromisso alguma coisa com um facão e baforando um palheiro. Puxamos um dedo de prosa, obviamente mais interessados na informação do que no papo. Precisávamos saber se naquela estradinha, já no estado de São Paulo, passava algum ônibus ou outra espécie de condução coletiva.

– Passa sim – respondeu o homem, com toda naturalidade. Enquanto esboçávamos um sorriso de satisfação, o matuto completou:

– Toda terça.

Era uma sexta. E no meio do desespero geral, ainda deu a punhalada final:

– Mas ‘as veiz fáia’.

Incríveis histórias medíocres de montanha - a série

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha

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