1 de setembro de 2008

O campo dos Wagner [2]

O pequeno

A carne era tão saborosa quanto qualquer outra. Durante o preparo não ouve palavra alguma. O desdém das brincadeiras deu lugar a solene desconfiança. Ninguém ousou fazer pergunta, qualquer que fosse, tampouco questionar a possibilidade de comer aquele animal. Simplesmente carnearam e assaram. A primeira lasca de carne suculenta foi deitada solenemente sobre a tábua e picada em oito pequenos pedaços. Um para cada presente. O ritual foi quase sacro, como a santa ceia em alguns redutos protestantes. Cada um com seu naco de carne entre os dedos, olhando fixamente uns para os outros, procurando por algum sinal de qual seria o momento exato de ingerir o alimento. Ilmar Wagner, o mais novo e intempestivo dos irmãos, foi o primeiro a levar a carne à boca. Os outros o acompanharam em seguida. A mastigação foi lenta e apreensiva, até que Ilmar finalmente engoliu e escancarou a boca para mostrá-la vazia, soltando, em seguida, grande gargalhada. Daí em diante, todos voltaram a descontrair-se e, embalados pela carne e muito chope, comeram até se esbaldar.

Nem exército, nem pesquisadores misteriosos. Salvo algum turista curioso que aparecia eventualmente no sítio dos Wagner, ninguém mais havia tocado no misterioso assunto. Com o passar dos meses, caiu em absoluto esquecimento. Outra coisa era fonte de grande preocupação na vila. A produção de leite e, consequentemente, queijo, vinha caindo assustadoramente. Era o produto principal na pequena cooperativa de colonos e o ganha pão de quase todas as famílias do vale. Os Wagner presidiam a cooperativa e cinco dos seis amigos que estiveram no estranho banquete meses antes eram pessoas influentes nas decisões dos cooperados. O sexto presente era o pequeno Ernst. Chamavam-no de pequeno não exatamente pelo porte físico esguio, nem pela idade, como já demonstrava a barba crescida na cara. O adjetivo era simplesmente um modo carinhoso de tratar o piá. Ninguém na verdade sabia quantos anos tinha. Foi encontrado na vila aparentando algo em torno de 5 ou 6 anos, exatamente no mesmo local onde o gado, recentemente, aparecera morto. Daí em diante, foi educado por todos. Morou em várias casas, com várias famílias e até na igreja, sob os cuidados do pastor, durante algum tempo. Sumiu várias vezes, tendo ficado até semanas desaparecido, mas era sempre encontrado novamente naquele mesmo pasto. Não falava nada. Nunca se ouviu dele emissão de som algum. Nem choro, nem riso, nem gritos de dor. Permaneceu como consenso geral que lhe faltava algo na garganta, e deram todos por satisfeitos. Isso até aquela tarde.


Antes:
O campo dos Wagner [1]

Um comentário:

  1. Ah, conto de horror e mistério em forma de seriado! Que mais posso pedir.

    *música de suspense*

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