28 de abril de 2008

Fétido

Ainda que às portas da liberdade, permanecia atado a pesadas correntes. Preso às docas, acorrentado ao cais, exalando cheiro de peixe e excremento de aves, o jovem mal conseguia abrir os olhos. A claridade do sol refletindo sobre o oceano verde azulado perfurava-lhe os olhos como lâminas afiadas. Sentia náuseas ao ouvir os sons da liberdade e sentir a imensidão do horizonte. Os anjos que o receberam transfiguravam-se diante de sua mente confusa. Eram inimigos. Gente nefasta dedicada tão somente a livrar-lhe daquilo que lhe era mais sagrado - tristeza, solidão e miséria.

Passou seis dias agarrado ao cais, com as costas voltadas para o oceano, pragejando contra o sol, o mar, o vento e os anjos, alimentando-se de guano, clamando pelo dia em que poderia voltar ao sepulcro fétido que lhe abrigou nos últimos anos.

No sexto dia, libertou-se. Diluiu-se e escoou pelo bueiro. Abandonou o cais sem ter experimentado o mar. Deixou os anjos, desaparecendo da vista de todos. Esvaiu pelos esgotos jubiloso, vitorioso, a caminho da morte.



Antes desse:
2. Fétido

22 de abril de 2008

Também sobrevivi [3]

Gandhi, Everett Koop, John Done, Annie Dillard, Frederick Buechner, Shuzaku Endo e Henri Nouwen


A manifestação dos ensinamentos de Cristo nunca se fez tão intensa quanto na vida de Gandhi. Sua capacidade de encarnar o evangelho até as raízes da sua alma, e também na carne, dão um nó na cabeça de um piedoso cristão fundamentalista. Gandhi joga na cara da igreja cristã a intensidade da capacidade de transformação que o Evangelho tem, quando vivido intensamente, em uma sociedade. Se ser discípulo de Jesus é seguir os seus passos, dificilmente encontraremos em nossas igrejas um discípulo mais fiel que “a grande alma”. Gandhi vira todos os fundamentos do mundo ocidental contemporâneo de pernas pro ar. Curiosamente os fundamentos do capital, da produção, da performance do mundo moderno tem origens teológicas, nascidas no seio da reforma protestante e não por coincidência manifestados nas suas formas mais grotescas na maior nação protestante do planeta.



Everett Koop mostra um ideal de envolvimento do cristão na política e poderia ser usado como modelo a todo ‘bispo’ evangélico que se lança na vida pública no Brasil. Sua declaração “sou chefe do departamento de saúde dos heterossexuais e homossexuais, do jovem e do velho, do moral e do imoral” soaria a blasfêmia em nossos círculos religiosos. Mas Koop demonstra a maturidade absolutamente ausente no lastimável envolvimento da igreja brasileira na política.



O encontro terrível com o sofrimento e a morte de John Donne, o convívio doloroso do cristão diante de um Deus que não se manifesta a ponto de reverter a história, mas que se porta como um observador passivo e silencioso do ser humano definhando, é a única forma razoável de oferecer consolo àqueles que realmente sofrem ao nosso redor. A mania evangélica de proferir ‘palavras proféticas’ sempre relacionadas à cura, sucesso e prosperidade é, na verdade, maldição.
“O curador ferido conclui que a graça e a cura são transmitidas por meio da vulnerabilidade de homens e mulheres que foram atropelados pela vida e tiveram o coração rasgado. A serviço do amor, apenas soldados feridos podem se alistar” (Brennan Manning em ‘O impostor que vive em mim’).


A maioria das igrejas que conheço mal aceitaria como irmã na fé uma fumante inveterada como Annie Dillard. Seria julgada por todos o tempo todo. Pode vir algo bom de um fumante (ou de Nazaré)? Mas Yancey vê nela e na sua observação da revelação redentora de Deus na natureza, sopros de graça e amor divino que pode alcançar os doentes e pecadores.



Frederick Buechner tornou-se um cristão fora do ninho, apesar da formação teológica e ordenação pastoral. Alguém que encarou a fé com a franqueza de duvidá-la. Alguém que não encontrou respostas, mas sim esperança. Alguém que acabou distante da igreja institucional pela total irrelevância dela em sua vida, sem, no entanto, tornar-se um ‘desviado’.



Shusaku Endo mostrou a capacidade de abstrair Cristo das categorias formais do pensamento ocidental, até mesmo abrindo mão de conceitos fundamentais da fé, mas que cria que essa era a única forma de o Evangelho fazer sentido ao seu interlocutor. Endo viu também em Cristo a capacidade de perdão que nós retiramos dele em nossa crença repleta de certezas e ênfase em padrões estéticos.



Em meio a um pequeno grupo de doentes mentais, Henri Nouwen encontrou a graça de Deus na fraqueza daqueles que nada têm a oferecer. Lá, e não no ambiente sacrossanto da igreja, entendeu não só tamanho da graça do Pai que recebe de volta o filho perdido, mas também o filho que jamais saiu de casa, sem nunca ter usufruído da presença do pai.

Veja também:
Também sobrevivi [1]
Também sobrevivi [2]

17 de abril de 2008

Ressuscita-me



[revisto e atualizado]

Mayakovsky, autor do poema musicado por Caetano Veloso e interpretado no vídeo acima por Renato Braz, foi um poeta visionário. Sofria com a fome, a miséria e a injustiça na Rússia no início do século XX.

Combateu as mazelas de seu país com palavras, pensamentos e atitudes. Queria ressurgir para transformá-lo, mas viu-se pequeno e incapaz diante da grandeza do sofrimento humano e, em 1930, aos 37 anos, suicidou-se frustrado com a impossibilidade da ressurreição e da transformação.

Vinte séculos antes, no entanto, um desconhecido judeu reacionário em um canto obscuro do poderoso império romano, havia elevado aos céus grito semelhante. O assombroso, nesse caso, é que ele foi atendido. O espetacular, em relação a toda humanidade, é que quando aquele clamor foi atendido, a resposta estendeu-se a todos. Diante de Cristo, ressurreição e transformação são reais.

“... estávamos mortos em nossos delitos e pecados... mas Deus nos ressuscitou com Cristo” (Ef 2:1-6).

O absurdo do cristianismo histórico, especialmente a versão reformada, é entender a ressurreição como um fim, como o objetivo da jornada do cristão. Se ressuscitamos, se já desfrutamos da eternidade, há de haver um motivo, um objetivo, uma razão maior que desfrutar do ‘céu’. Mayakovski queria ressurgir para lutar contra as misérias do cotidiano, para encerrar os amores servis, para que ninguém mais tivesse de sacrificar-se por uma casa ou um buraco. Paulo queria algo semelhante:

“... para mostrar a graça... para fazermos boas obras” (Ef 2:7-10)

Jesus, como Paulo intuiu com precisão, veio anunciar a chegada de um Reino! “O Reino dos céus está próximo” – ao alcance das nossas mãos. Ele já está entre nós e nós somos responsáveis por sinalizar isso! Os evangelhos estão repletos de referências a um Reino entre nós, a respeito do qual somos responsáveis e que deveria ser nossa prioridade (Mt 6.33 - Mt 18.4 - Mt 25 - Mt 21.28-31, 43 - Mt5).

Com cristãos, temos que abandonar a visão escapista de “ir para o céu”, ou a visão acomodada de um Deus intervencionista que virá colocar tudo em ordem por nós. Temos que abraçar as visões proféticas e revolucionárias de artistas e poetas como Mayakovsky.

Fazer discípulos é fazer pessoas que, assim como Jesus, ajam em favor do Reino. Já pensou? Pessoas imitando Jesus e levando outras pessoas a o imitarem*. Essa é a função do Evangelho do Reino, da nova vida em Cristo. Esse é o motivo do nosso clamor:

Ressuscita-me!

O AMOR
Letra: Mayakovsky
Música: Caetano Veloso

Talvez, quem sabe, um dia
Por uma alameda do zoológico
Ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa
eles a ressuscitarão
O século 30 vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo que não podemos amar na vida
Com o estrelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me
Ainda que mais não seja
Porque sou poeta e ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida
Para que não mais exista amores servis
Ressuscita-me
Para que ninguém mais tenha
De sacrificar-se por uma casa ou um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja, pelo menos, o universo
E a mãe
Seja, no mínimo, a terra
A terra, a terra

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* É sempre bom lembrar, para o leitor desatento, que devemos fazer discípulos de Cristo e não nossos, como nos induzem a crer as hierarquias de ‘autoridade espiritual’.
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Ventilado a partir do sopro original de Gladir Cabral.

9 de abril de 2008

Tristeza


O pequeno cômodo que abriga o corpo inerte luta para manter-se em pé. A única parte da modesta casa que por pouco ainda não ruiu, permanece mergulhada em sombra. Há meses o local foi privado de água e luz, servindo apenas como precário abrigo de ratos, baratas e bêbados. O jovem que jaz desfigurado sobre colchão surrado, regado a cachaça e urina, sabe bem a que se referiu Adoniran Barbosa:
A tristeza é um bichinho
Que pra roer 'tá sozinho
E como róe a bandida
Parece rato em queijo parmesão
Sobre o banco do carro novo o corpo desfigurado do jovem movimenta-se lento e descontrolado. O caminho para a casa de recuperação é longo. Já esteve em três ou quatro. Fugiu de todas. Na última fuga, vagou a pé e descalço, durante oito dias, até chegar novamente ao rude cômodo que ele chamava de "minha casa".
A caminho da esperança, chora, xinga, grita, dorme e não consegue controlar a urina. Na casa, é recebido por anjos que viveram outrora no inferno, mas foram resgatados pelo amor e serviço de semelhantes.

É o início das dores que podem trazê-lo de volta à vida.
Veja também:
1. Tristeza
2. Fétido

7 de abril de 2008

O grande inquisidor



Minha curiosidade pela obra de Dostoievski nasceu da leitura do revolucionário livro de Philip Yancey, “O Jesus que nunca conheci”. Comprei uma antiga edição do “Irmãos Karamazov”em um sebo e fiquei maravilhado com o texto. A saga de Aliócha Karamazov, o mais improvável herói da literatura, é absolutamente cativante.

É, no entanto, o assombroso sonho de seu irmão Ivã que transcrevi aqui no blog tempos atrás. Mas a grandeza do texto pedia uma forma de acesso e leitura facilitada. Por isso montei o texto em um único volume que está agora disponível para baixar.

Seria ridículo tentar alguma forma de interpretação, crítica ou contextualização do texto. Ele fala por si só e é mais contextualizado do que poderíamos imaginar.

Então, clique aqui e desfrute.

1 de abril de 2008

Também sobrevivi [2]

Chesterton, Paul Brand, Robert Coles e a dupla Tolstoi, Dostoievski


Com Chesterton (e CS Lewis), Yancey descobre que existe vida inteligente e crítica na igreja (cristãos que desatavam suas mentes ao invés de contê-las). Nele o autor encontrou também a capacidade de usufruir alegremente da vida e perceber Deus nos detalhes simples, ao contrário dos olhares cisudos dos religiosos e suas carências de racionalizar a fé, ou torná-la refém de experiências místicas. Vale a pena conferir a “Ortodoxia” de Chesterton, recém lançada pela Mundo Cristão.


O médico dos leprosos, Paul Brand, mostrou a abnegação necessária ao cristão e sua devoção ao ser humano como práxis da devoção a Deus. Brand também circulava livremente nos ambientes não religiosos, sendo livre dos rótulos que impomos a nós mesmos por nos portarmos de maneira dogmática e litúrgica em nossa vida cristã. O serviço sacrificial de Brand entre gente tão sofrida contrastava com sua alegria e contentamento. A sua forma de encarar a dor como uma bênção divina e demonstrar isso em seus estudos foi libertadora, bem como sua capacidade de ver Deus em cada detalhe do corpo humano. Extremamente marcante foi a forma como foi recebido na índia pelas comunidades carentes onde ele e seu pai trabalharam, em oposição à forma como circulava em um imponente hospital de Londres, demonstrando de forma clara o contraste da “transitoriedade da fama com a perenidade no investimento no serviço aos outros”.


O trabalho de Robert Coles demonstra a beleza e a essencialidade da simplicidade na fé. Sua forma de entrar em contato com pessoas, de olhar a todos como iguais, de transitar como mestre entre os salões lotados das universidades e, simultaneamente, trabalhar como zelador são impressionantes. Mas assombrosa mesmo é a conclusão de que era muito mais fácil encontrar alegria, satisfação e paz na vida de pessoas pobres, sofridas e sem recursos. Coles percebeu na prática que aquele judeu errante que morreu na cruz sabia o que falava quando exaltava os pobres e dizia que o rico teria muito mais dificuldades para encontrar o Reino de Deus. No fim, demonstra que para oferecermos amor cristão, precisamos romper a fortíssima barreira que nos diferencia do “outro” seja ele considerado menor, ou maior.


“Cada pessoa é um mistério separado e finito, não alguma coisa que pode ser
colocada em uma categoria ou outra”.


A busca pela perfeição, a autonegação absoluta em favor da “santidade” de Tolstoi, e a dependência exclusiva da graça de Deus de Dostoievski são o que separa e atrai esses dois russos. “De Tolstoi aprendo a olhar para dentro... [e] percebo quão miseravelmente distante estou dos ideais do Evangelho. Mas a partir de Dostoievski, conheço a extensão total da graça”. Segundo Yancey, a única maneira de resolver a tensão entre os ideais do evangelho e nossa triste realidade é aceitando que “nunca estaremos à altura, mas não temos que estar nesse patamar”.

[continua]

Veja também:
Também sobrevivi [1]