1. Morte
Desde pequeno aprendi a ler a bíblia como um livro de conceitos. De cada frase, versículo ou capítulo eu deveria extrair um profunda lição capaz de remodelar minha vida ou, pelo menos, meu dia. Ouvia diversas vezes a bem intencionada alegoria que dizia que esse livro santo era o ‘manual do fabricante’. Qualquer espécie de enguiço poderia ser resolvida em uma simples consulta ao manual. Algumas bíblias traziam inclusive um índice de busca rápida. Angustiado? Salmo 46. Deprimido? Romanos 8:31-39. Sem dinheiro? Salmo 37. Era (ou deveria ser) uma leitura conceitual, racional, correta, objetiva, acertada. Não me espanta o histórico de frustração das minhas inúmeras tentativas de penetrar os insondáveis segredos escondidos entre as palavras desse manual complexo e impenetrável.
Carregado suavemente por diversos sopros de diversas fontes, aos poucos fui tomando conhecimento de uma outra bíblia. Aquele pesado compêndio acadêmico de capa preta e palavras de chumbo precipitou-se do pedestal para o solo fértil do mundo dos sonhos e, ao tocá-lo, foi tragado para suas entranhas com a mesma comoção de um náufrago que encontra água doce depois de dias à deriva em alto mar.
Descobri a imprecisão, as subjetividades, as divergências e as inúmeras variações de texto nos milhares de fragmentos de manuscritos* encontrados por todos os cantos do mundo e preservados e reunidos com esforços dignos de muita honra. A intolerante ‘inerrância’ que brotava convicta das entranhas da minha origem religiosa despetalou-se como uma frágil for do campo.
E brotou diante de mim a narrativa.
2. Vida
De forma inesperada e redentora, aquele pesado livro de capa preta ressurgiu do pó da terra leve e alado. Multicolorido, passou a borboletear diante de meu olhos e, para pegá-lo, tive que correr, pular, rolar, cair e levantar. Refletindo todas as cores do arco-íris, o livro agora fluído e impreciso, causou-me alumbramento.
É engraçado como se aceita que Deus, quando encarnado, revele a verdade através de metáforas, parábolas e alegorias. Bodas do cordeiro, virgens, ovelhas e bodes são permitidos ao Deus homem. Antes de sua manifestação em carne e osso, porém, lhe é proibido usar esse tipo de linguagem. Gênesis precisa ser literal. A torre de Babel também. E a arca de Noé. E o grande peixe de Jonas. A simples menção da possibilidade da metáfora abala os alicerces da fé da maioria dos cristãos que conheço.
Abandonei a limitada sala escura da objetividade e, como Alice, conheci o país das maravilhas; como Dorothy, fui levado por um redemoinho ao maravilhoso mundo de Oz.
Alguns podem apavorar-se com descrição tão festiva e fantasiosa do livro sagrado. Esses crêem que transformar esse manual em um livro de histórias fantásticas é depreciá-lo, reduzi-lo, limitá-lo. Engano terrível. Nenhum conceito pode ser maior que a narrativa. Nenhuma conclusão pode ser maior que a história em si.
As considerações finais são a clausura da história.
3. À luz de um abajur
Uma das muitas aplicações sobre a inusitada afirmação de Jesus de que o Reino de Deus é das criancinhas, está na forma como elas lidam com a narrativa. Abra um livro, sob a luz amarela de um abajur, do lado de um menino de 5 anos, no silêncio de seu quarto, entre brinquedos e bonecos, com a sombra da noite e seus ruídos estranhos entrando pelas frestas da veneziana, e comece a ler uma história. O pequenino e frágil menino pode tornar-se herói, gigante, mago, rei ou monstro. Ele se assusta, ri, arregala os olhos, observa calado, agarra seu braço com força ou reclina-se sobre seu peito com o sorriso meigo de um anjo.
Ao libertar-me das letras de chumbo do livro preto, pude iniciar minha jornada à infância. Não é fácil. Não é natural ou intuitivo para quem abandonou há anos a beleza da imaginação e entregou-se ao mundo cinza da objetividade. Mas é uma viagem que vale a pena. É um esforço compensador. Sentir a brisa morna dos montes da palestina ou os ventos terríveis e gelados das tempestades no mar da galiléia. Sentar entorno da fogueira e inalar o cheiro do peixe e o ar denso no momento do confronto entre o mestre e o homem que o negou. Ver em seus olhos a graça e o perdão inesperados. Notar o peso dos ferros nos braços e pernas de Paulo, no canto úmido e fétido de uma prisão romana. E dançar em festas de casamento.
Penetrar na história nos faz entender que as letras são carregadas de emoções, embotadas em suor e lágrimas, embaladas em músicas e danças. Que há no ar tensão, medo, angústia, sarcasmo, dúvida, alegria, receio, esperança, desalento, êxtase, cansaço e renovo. Que os corpos da história se tocam, exalam odores, impregnam-se de pó, abraçam-se, trocam carinhos, afetos, provocações, empurrões, desavenças, olhares de ódio, inveja e perdão.
A narrativa é inconclusa, como é a humanidade. É cheia de variáveis, de caminhos, de circunstâncias, de nuances e possibilidades. Ela liberta a bíblia da clausura das considerações finais e a eleva à altura do fantástico, que extrapola tempo, espaço, cultura, lei, tradição e mito.
A leitura conceitual da bíblia é conclusiva. É a busca pelo ponto final.
A leitura narrativa é incerta. É o encontro com as reticências. Experimente...
- * Existem cerca de 200.000 variantes no texto em um enorme volume de manuscritos referentes a 10.000 passagens ou palavras na Bíblia. Há diversos erros não-intencionais que resultam de problemas de cópia. Em alguns lugares falta uma letra, em outros se pula uma linha inteira ou troca-se letras parecidas (exemplos em Geisler & Nix 1997, 173). Às vezes, o escriba incluía as notas ou comentários nas margens como partes do texto. Em alguns casos não sabemos se havia intenção de mudar o texto ou não (1 Jo 5:7) (Geisler & Nix 1997, 172-74). Existem também variações intencionais para conformar o texto a uma escola de escribas, padronizar a utilização no culto ou eliminar diferenças doutrinárias introduzidas (1 Jo 5:7; Mc 16:9-20). Essas diferenças entre manuscritos não é coisa recente. Orígenes já se referia às grandes diferenças entre os manuscritos a ponto de dizer que talvez todos os textos da época haviam sido corrompidos (Metzger 1992, 152). (FONTE: Introdução à hermenêutica para Pós Graduação em Teologia Prática da Faculdade Fidelis. De Arthur W. Dück).
Ah, mas essa história de reticências é complicada...
ResponderExcluirExige que a gente pense, avalie, escolha. E, pior de tudo, se algo der errado não há em quem por a culpa.
Ah, Tato! E quem disse que sempre tem que dar certo? Já disse Lutero: "A verdadeira fé é a daquele que se atira em Deus para viver ou morrer".
ResponderExcluirÉ preciso correr riscos para que a vida ganhe sabor. "Só quando nos arriscamos a cada momento é que realmente vivemos", disse William James. Tuco, nesse mundo religioso neurótico e de fé pragmática e aguada, embarco nessa com você rumo a Oz... Ou seria Jerusalém? rsrsrsrs
Ebeneser
Se será útil pra vc, se-lo-á para mim tb. Manda brasa e vamo qui vamo!!!
ResponderExcluirAgora você esta começando a ler a Bíblia.
ResponderExcluirSeria muito legal se alguém tivesse idéia de fazer uma edição da Bíblia que não fosse capa preta. Que não quebrasse a magia literária dos originais. Que não viesse com pressuposições doutrinárias nas margens.
Certamente a editora seria invadida e queimada por fundamentalistas.
Existe uma tradução da Bíblia para o português feita por Uberto Rohden. Um dia vou achar isso - deve ser bem interessante. Talvez até valha a pena ler a Bíblia de novo...
Tuco! Me empresta essa Bíblia...
ResponderExcluirTuco! Me empresta essa Bíblia...
ResponderExcluir:-)
ResponderExcluirRaquel. Essas bíblias estão espalhadas por aí, nos cantos escuros, nos leitos de hospital, em mochilas surradas de andarilhos.
Quem procura, acha - se procurar de todo coração.
:-)
Foi mal Tuco.Essa Bíblia eu tenho
ResponderExcluirhá muito tempo...apenas achei a
descrição da sua mais colorida...
Obrigada pela atenção.