20 de junho de 2013

Carol foi pro mar

Enquanto o pai montava guarda-sol e cadeiras e a mãe esticava a esteira na areia, Carol pulava ondas. Enquanto o pai besuntava de óleo as costas da mãe estirada na esteira, Carol cavava buracos e fazia castelos. Enquanto o pai permanecia atento, olhando de longe, e o sol dourava a pela branca da mãe, Carol foi pro fundo, pisou em buracos, levou sustos, engoliu água e voltou pro raso.

Carol foi pra areia, pediu picolé, e ganhou, mas não era isso que queria. Sentou na sombra, lambuzou-se toda, lembrou do cansaço do pai, das vezes que a mãe falou que precisava de férias, que não aguentava mais e viu os dois deitados, quietos, olhando o horizonte. Pediu ainda outro picolé, e ganhou, antes de criar coragem pra falar:

- Pai, quer ir comigo pro mar?
- Agora não, filha. Agora não...

18 de junho de 2013

Ouro e espelho

Comíamos pouco nos dias que passamos na Nigéria. O dia todo era pão com manteiga e água, e um chazinho quente de manhã que, com duas colheres de abençoado leite em pó, era adoçado como nos filmes. Me sentia em Londres tomando chá com 2 pedrinhas de açúcar. Depois disso era aquela correria de um lado para outro, registrando o trabalho diário da ONG Caminho Nações na luta contra a estigmatização de crianças naquele país. Só à noite é que parávamos num restaurantezinho para a refeição mais apimentada que já vi na vida. Se duvída, repare no temperinho de pimenta jogado sobre o frango no final desse vídeo.

O pão e a manteiga vinham de um mercadinho minúsculo, todo bagunçado, iluminado à velas e lampiões à querosene, próximo de onde estávamos hospedados. Até que chegou o dia em que decidimos tentar uma compra maior e mais diversificada, em algum lugar que inspirasse mais confiança e lembrasse um supermercado aqui da nossa terra. Foi quando descobrimos que não havia nenhum. Que, onde estávamos, os suprimentos, sejam quais fossem, deveriam ser comprados em algum dos muitos e muitos mercadinhos minúsculos e bagunçados, iluminados à vela. Não havia nenhuma alternativa mais 'civilizada' e confesso, envergonhado, que quando descobri isso senti uma pontada de horror. Que fim de mundo era aquele sem um supermercado de verdade?

Só depois de algum tempo é que fui me dando conta do quanto, como diria minha avó, o hábito faz o monge. Estava eu ali, um brasileiro classe média, no delta do Níger, acostumado à toda sofisticação do mundo moderno (e, acredite, somos um país avançadíssimo, coisa chique mesmo, se comparado à Nigéria) resmungando inconformado com a ausência de um supermercado decente naquele canto da África Ocidental.

Eu queria o Big, o Wall Mart, o Carrefour. Queria uma multinacional se instalando por ali, levando todas as centenas de mercadinhos à falência e contratado a massa falida a preço de banana. Queria que o grupo Sonae entrasse devorando tudo, abocanhando famílias, aumentando seu lucro às custas dos produtores locais, desde que me oferecesse um lugar bonito, climatizado, espaçoso e organizado. Queria o progresso à qualquer custo.

É incrível como somos moldados pelo meio.

Quero que a Nigéria cresça. Tem muita miséria por lá. Quero, acima de tudo, que a estigmatização infantil acabe e que crianças tenham esperança num futuro melhor. Quero educação, trabalho, renda e saneamento básico por lá tanto quando aqui, ou no sertão do Pajeú. Mas torço para que as melhorias não engulam o povo oferecendo em troca a ilusão do conforto. Que ninguém mais, em lugar nenhum, troque ouro por espelho.

-------

Conheça o trabalho do Caminho Nações na Nigéria
Saiba como você, como eu, está aos poucos tornando-se um rato

10 de junho de 2013

Luz e trevas

Nevoeiro

Elmiro caminhava sozinho no ermo da floresta escura que ladeava sua casa. A luz trêmula do lampião queimava banha de porco iluminando discretamente o caminho e temperando-o com o aroma pesado da gordura queimada. Era pouco óleo e Elmiro esperava alcançar os limites da floresta antes da luz extinguir-se. O som que ecoava no mato era vibrante, vivo, intenso e tenso.

A chama se apagou quando o velho já avistava adiante o azulado da luz da lua refletindo difuso no nevoeiro que lambia sereno o pasto verde do seu sítio. Elmiro parou no limite da floresta, sentou no tronco seco do cambucá que fora derrubado a machado pelo seu avô para fazer os moirões que cercavam a bicharada e permaneciam lá, firmes, há cinco décadas. Sentado na beira do tronco, ergueu a cabeça lentamente para deleitar-se na visão que lhe enlevava a alma.

Viajou os olhos solenemente pelas estrelas, constelações, nebulosas, planetas e meteoros enquanto sentia a brisa gelada e úmida da noite molhar sua face sulcada por um emaranhando incrível de rugas profundas. As gotas do orvalho escorriam lentamente pelos labirintos de seu rosto. Agora de olhos fechados, Elmiro lembrava do luar incrível que vira no ano anterior quando tropeirava solitário pelas serranias de Campos Novos. Salgou o orvalho com lágrimas pela simples lembrança do vapor azulado subindo do corpo quente de seu cavalo, dançando à luz do luar em movimentos imponderáveis, naquela noite belíssima.

O cheiro do café já alcançava a beirada da floresta. Era hora de aquecer-se em casa.

***

A partir do século 18, e de forma definitivamente empolgante, o iluminismo fez nossos olhos se abrirem para um universo novo de conhecimento. Os misticismos antigos foram um a um sendo iluminados pela luz das novas e incontestáveis descobertas. E viu o homem que isso era bom, diria com muito acerto a versão humanista da poesia de gênesis.

Um universo de escuridão se dissipa em um clique. Se não for no interruptor, será no google. E a luz deitará sobre nós. E todas as trevas serão dissipadas.

Mas a luz que a ciência nos lançou apagou as estrelas. Nos movimentos frenéticos de nossos centros urbanos não há mais espaço para nebulosas, estrelas cadentes e vapores azuis dançando ao luar. Nem para os mistérios que essas visões evocam. Nossas lâmpadas iluminam o ambiente que vivemos, e isso é uma bênção, mas apagam para sempre os mistérios indecifráveis da noite e os movimentos que suas asas suaves embalavam na alma do homem.

Um amigo me fez lembrar da frase de Carl Sagan: É melhor saber do que crer. Saber é bom, disso ninguém tem dúvida, mas jamais saberemos o suficiente. Crer e saber podem andar juntos, de mãos dadas, e dançar nas noites escuras e geladas, sob a luz do luar.

7 de junho de 2013

Um convite à desilusão

Eventualmente surge alguém com a cara azeda me dizendo que aquele livro que escrevi é contra a igreja. O sujeito resmunga um pouco, fala sobre tradição, fala que não é possível viver qualquer coisa comunitária que não se torne uma instituição. E sai ofendido com qualquer resposta que eu tente formular. Acho engraçado, porque o livro não é contra igreja nenhuma, nem as entre aspas. A intenção do texto nunca foi lutar contra as igrejas até que todas fechem suas portas. Nunca foi uma cruzada contra coisa alguma. A única coisa que se propõe ali é que tiremos a venda dos olhos, demos nomes aos bois e paremos de nos iludir mutuamente dentro de qualquer que seja o modelo de igreja que se ofereça. É um convite à desilusão.

"Conhecereis a verdade e ela vos liertará" é uma forma diversa de dizer: pare de se iludir e encare a vida como ela é. Será mais fácil seguir os passos de Jesus se tudo for colocado às claras.

Tendo sido esclarecido de uma vez por todas que igreja é a partir de dois ou três, que não exige hierarquia nenhuma, nem lugar, nem data, nem liturgia; que é guiada pelo vento, que é livre e selvagem; que está debaixo tão somente do espírito de Cristo e nunca, jamais, em hipótese alguma, submissa à algum líder, alguém que a cubra espiritualmente, ou que lhe valide, ou que lhe dite as regras, ou que lhe represente; que não exige ministérios formais, nem líderes de ministérios, nem reuniões dominicais; que não depende de clero, nem de pastores formados e ordenados em cerimônia formal com imposição das mãos de outros pastores formados e ordenados; que não impõe sobre ninguém o recolhimento de dízimos para si, nem de ofertas, nem de primícias ou o que quer que seja, mas que simplesmente incentiva a generosidade e a partilha fundamentada unicamente no amor; que igreja nenhuma tem autoridade sobre a vida de niguém, muito menos o poder de excluir alguém da comunhão com Cristo, da ceia, ou do céu, etcétera, etcétera, etcétera.

Tendo tudo isso ficado claro e evidente (e o novo testamento deixa isso claro e evidente) não haverá enfim impedimento algum para que as instituições se formem com suas hierarquias, cargos, normas, estatutos e liturgias. E cada um poderá optar em filiar-se à essa ou aquela instituição ciente de que terá de se submeter a algumas regras impostas pelos regimentos internos. E saberá sempre e sem sombra de dúvida que essas normas são circunstanciais, e que a igreja de Jesus não tem nada a ver com nenhuma delas, ainda que naquela hora, lugar e circunstância, elas façam bem àqueles que ali se reúnem. Sim, sempre que dois ou três se reúnem haverá de se instituir algo entre eles. Tudo bem. Desde que isso jamais predomine sobre a essência, que é o amor e a liberdade. Assim se saberá que em tudo isso, no horários estabelecidos e nas normas e ritos habituais, poderá sempre haver encontros humanos na presença de Cristo e, portanto, poderá haver igreja reunida. Tanto quanto em bares, quartos, praças, salas, becos escuros e sujos, quintais, montanhas, escritórios e bocas de fumo.

O espírito de Cristo é livre e absolutamente desprovido de preconceitos. É o espírito do amor, do perdão, da reconciliação, do abraço, do bem, do serviço humilde em favor do outro. E por onde esse espírito passe, onde sopre, onde pouse, se houverem dois ou três, seja lá quais forem as roupas que usem, seus pecados egressos ou futuros, suas neuroses, seus vícios, suas liturgias, seus estatutos e atas, ou sua profissão de fé, ali haverá igreja.

-----------

Veja também: Almas à venda