24 de outubro de 2013

Som da rua

"La muerte a mi no me coge,
no me coge descuidado"


Conheça o belíssimo projeto "Son Callejero".
A orquestra de salsa de moradores de rua de Bogotá.



Veja o site dos caras.
Ouça o CD.
Acompanhe a foto reportagem.


"Yo soy hijo del asfalto
Protegido de la noche
Yo tengo por dentro el cielo
Y los prados por colchón
Las calles son mias
Soy callejero"


"Camina caminador, no te detengas, el mundo tiene valor y mil belezas[...] Camina caminador, sigue el camino del amor"

14 de outubro de 2013

A linha que tracei

Era torta a linha que tracei.

Não sinuosa. Não oblíqua.
Torta mesmo. Disforme. Mas tracei.
E tracei forte e de uma vez só.
Sem ficar remendando e passando por cima duas, cinco, dez vezes.
Não. Sem aquela neurose de consertar linha que já foi traçada.

E foi à caneta, em papel jornal.

Estava convicto, estava confiante.

Não de que fosse a linha certa no lugar certo,
ou que conseguiria traçá-la reta;
mas de que chegara a hora de tentar.
Respirei fundo. Enchi o peito.

E risquei.

Arrisquei.

Mais uma entre tantas.
Todas tortas.
Porque penso reto, mas traço torto.



Veja também:
Nada de nada

10 de outubro de 2013

Vento sul


Quando trabalhava como office boy numa imobiliára na Carlos de Carvalho, entre um e outro banco parava para ouvir o Viento Sur no calçadão da Boca Maldita. Ouvia até chegar à clássica Guantanamera, quando um dos integrantes do grupo começava a passar o chapéu sem parar de cantar. Comprei todos os seus cassetes e escutei até gastar. Ouvir aquele coro de 5 vozes cantando El Condor Pasa na correria da rua XV era como ser transportado para algum ponto distante da América Andina e lá desfrutar do vento gelado que desce do alto da cordilheira.

E agora, quase 20 anos depois, os encontro por acaso nesse mundo virtual e, inevitavelmente, lembro de tudo como ontem. Lembro das jarras de suco que tomei nos dias quentes, no boteco ao lado do Cine Plaza. Das vezes que fugi correndo da piazada de rua, pela Jesuino Marcondes ou pela Comendador Araújo, com os bolsos cheio da grana que fui trocar para o Osni naquele doleiro do edifício Asa. Do Fliperama que tinha em frente ao Bradesco e das fichas que encontrei no chão. Do cobrador do Detran-Vicente Machado, que me viu esquecer um envelope da imobiliária cheio de dinheiro e o guardou para mim, e da bronca que levei quando, no dia seguinte (porque eu pegava aquele ônibus todos os dias), ele me devolveu o envelope. E da alegria que me deu. Dos maços de cigarros que comprava para Sônia na banca da Praça da Espanha. Dos picolés que ela algumas vezes me pagou em gratidão. Do corpo mole do Mola, o outro office boy que enrolava enquanto eu trabalhava. Do Eduardo, meu professor de física na sétima e oitava séries, que encontrei hippie vendendo artesanato na praça Zacarias.

Mas de todas as lembranças dessa rotina do meu primeiro emprego, nenhuma se compara ao som suave e latino do Viento Sur soprando para longe o barulhento frenesi do centro urbano e comercial da capital paranaense, sussurrando para mim, sem que me desse conta, que há um outro caminho. É possível que tenha sido deles o som original que é hoje o eco dentro de mim, sussurrando sempre a mesma coisa.

No teatro da UFPR, quando eu já havia deixado o planalto araucano.



Em 1993, quando eu ainda caminhava todos os dias pelo centro de Curitiba.

7 de outubro de 2013

No inferno [11]


11.

Abud aproveitou o que pôde da geladeira, depois refestelou-se no sofá e procurou algo interessante na imensa TV da sala de estar. Zé Augusto teve um dia corrido mas conseguiu resolver pouco do que pretendia. Estava confuso, e ter deixado Abud sozinho em sua casa começou a parecer-lhe uma imensa estupidez. Voltou bem mais cedo do que programara e encontrou Abud dormindo no sofá, com uma bandeja de bolachas, queijos e pipoca no chão e uma garrafa de vinho vazia na mesa de centro. Vê-lo em casa já foi um alívio, pois temia não encontrar nem o acidentado nem alguns objetos de valor. Comeu alguma coisa na cozinha e foi tomar banho. Quando apareceu novamente na sala, Abud já acordara e lia uma das revistas espalhadas no balcão da TV.

"Passou bem o dia?", perguntou Zé Augusto enquanto olhava para os restos de comida e pegava a garrafa de vinho na mão.

"Maravilhosamente bem", respondeu Abud, sem nenhum constrangimento. "Quase já não sinto dor. E você, aproveitando bem o inferno?"

Zé Augusto franziu a testa e, olhando fixo para Abud, respirou fundo e sentou-se na mesa de centro, segurando firme a garrafa de vinho com a mão esquerda, enquanto o indicador direito deslizava girando na boca da garrafa. "Que raio de inferno é esse? Aqui vai tudo bem. Não tenho do que reclamar. Mas passei o dia com imagens estranhas pipocando na cabeça. De quartos escuros, vielas estreitas, cheiro de mofo. Aquilo tinha muito mais cara de inferno que isso."

"Você já passou por momentos ruins aqui, Zé. O inferno é assim. Te dá um gás pra você ficar todo empolgado, depois desce o cacete quando você menos espera" e enquanto falava ia mordiscando alguns pedaços de queijo que sobraram na bandeja. "Você pode passar mais um tempo aqui nessa piração, todo feliz com seu sucesso, mas vai chegar a hora em que os dias e a badalação passarão voando e, se tudo correr bem, só lhe restará o quarto cinza" e levantou caminhando na direção da geladeira, Zé Augusto acompanhando com os olhos.

"Se tudo correr bem? O inferno é o quarto cinza, cacete. Não isso aqui. É só eu tomar cuidado para não ir para naquele quarto."

"É aí que você se engana", continuou Abud com a cabeça enfiada dentro da geladeira, "o quarto cinza é sua salvação. Mas não adianta nada eu tentar convencê-lo disso. Sei que parece um absurdo. Já disseram uma vez que é loucura pra quem não crê, pra quem não vê, pra quem não percebe", e tirou da geladeira um pote de azeitonas. "Sua visão da realidade agora está distorcida, contaminada por esse inferno onde você se meteu. Mesmo nos momentos em que você finalmente se percebe numa roubada e acaba querendo algo diferente para si, não consegue ver a beleza que há do lado de fora. Para você é cinza e escuro lá e aqui é festa. Mas isso é uma percepção afetada, distorcida, contaminada. Além disso, você ainda não conseguiu se livrar do medo de perder o que tem aqui. Enquanto esse medo não sumir, o quarto cinza seguirá sendo cinza aos seus olhos."

"Então não é cinza aos seus? Eu lembro de já ter tido medo do inferno em uma ou outra ocasião, mas já não tenho mais faz tempo."

"Tem muita gente com medo de ir para o inferno, mas é sempre daquela caricatura religiosa de inferno cheio de diabos vermelhos e tridentes. O avesso do inferno é o amor e amor encerra o medo. O seu problema, Zé, é o problema da humanidade. Não o medo de ir pro inferno, mas o medo de deixá-lo, de ter de abrir mão dele. É só o que tenho a dizer por enquanto, Zé. Daqui pra frente é contigo. Estarei no quarto cinza se você voltar pra lá." Abud levantou-se, encheu a mão de azeitonas e saiu mancando, ainda doído pelo atropelamento.



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Continua...

Acompanhe a série:
No inferno | 01
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No inferno | 10
No inferno | 11

3 de outubro de 2013

No inferno [10]


10.

Abud se lançou cansado sobre o sofá da sala.

"Ô rapaz. Peraí. Você está todo sujo de sangue."

"Dá um tempo Zé. Você acabou de me atropelar. Estou quebrado. Tá doendo um bocado."

"E porquê não me deixou levá-lo ao hospital?"

"Deixa eu tomar um banho e a gente conversa."

A primeira reação de Zé Augusto ao ver aquele sorriso ensanguentado no chão ao lado de seu carro, foi apavorar-se. Parecia um psicopata, uma cena saída de algum filme de suspense. Pensou em entrar no carro e abandonar o corpo ali. Olhou rapidamente em volta procurando alguma testemunha mas não havia ninguém no seu raio da visão. Ligaria para emergência, mas não ficaria ali ao lado daquele doido. Chegou a entrar no carro, mas antes de bater a porta o sorriso desvairado do atropelado pareceu-lhe familiar. "Vai me deixar aqui, Zé?", perguntou o moribundo ainda estatelado no chão e sem tirar os olhos de Zé Augusto. A voz, por fim, era inegavelmente familiar. Soube que conhecia o homem, apesar de não lembrar-se exatamente de onde. Desceu novamente do carro, ajudou-o a sentar-se e buscou a toalha que usava na academia e ficava sempre no porta-malas, para estancar o sangue. Quis levá-lo ao hospital, mas o homem se recusou. "Me leva para sua casa, Zé. Me deixa ficar por lá. Você ainda não lembra de mim? Esqueceu do Abud, o cara que veio lhe resgatar do inferno?"

Inferno? Foi uma pergunta inquietante. Era um assunto familiar. Zé Augusto era um cético sarcástico, um agnóstico despreocupado. Já havia em algumas ocasiões temido a possibilidade de um dia amanhecer entre fogo e enxofre, mas tratou de convencer a si mesmo que não valia a pena levar um medo desses à sério. Permaneceu por alguns minutos parado, em pé, ao lado de Abud, vendo o homem limpar-se, estancar o sangue, arrumar a roupa.

"Vamos Zé. Me ajuda aqui."

Cuidadosamente ajudou Abud a entrar no carro, mancando e gemendo, e voltou para casa. Apesar de não lembrar exatamente de onde, sabia que conhecia aquele sujeito estranho e intuía ser alguém de confiança. Ofereceu-lhe toalhas, roupas limpas e chuveiro. Enquanto ele tomava banho saiu para o escritório deixando um bilhete na mesa da cozinha: "A geladeira está cheia. Sirva-se e descanse um pouco. Estarei de volta no fim da tarde."



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