21 de julho de 2023

Deus Cura a LGBTfobia

“Desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea” (Mc 10.5)


Tem texto bíblico pra tudo. Versículos pinçados aqui e ali podem justificar todo tipo de coisa. O texto bíblico já justificou a escravidão. Leituras tendenciosas, preconceituosas, concluíam que estava tudo bem escravizar pessoas de pele negra. Uma quantidade enorme de comportamentos já foi imposta aos devotos do cristianismo, uma quantidade enorme de imposições já foi revogada e outras tantas ressurgem aqui e ali eventualmente.

Está escrito!, é o argumento. É estranho, porque está escrito também: “toda a Lei se resume num só mandamento, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5.14). Ou ainda mais desafiador, saindo da boca de Jesus: “Eu lhes dou este novo mandamento: amem uns aos outros. Assim como eu os amei, amem também uns aos outros. Se tiverem amor uns pelos outros, todos saberão que vocês são meus discípulos” (Jo 13:34).

Amar como Jesus amou. Esse é o desafio. E é importante lembrar que o amor de Jesus abraçava pecadores e confrontava religiosos fundamentalistas ultraconservadores o tempo todo (no tempo de Jesus, chamados de fariseus). Que o amor de Jesus era “para pregar boas-novas aos pobres (...) proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4).

Mas há quem goste de lei. Há quem ame regras. Mas regras selecionadas, porque todas é demais. Uma das regras de estimação é a que deriva do que disse Jesus no versículo que abre esse textão: “Desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea”. Está dito, só tem duas possibilidades, qualquer coisa fora disso é ‘abominação’.

Some-se a isso o que disse Paulo em Rm 1 ou em 1 Co 6. Está registrado lá. Afeminados e sodomitas não herdarão o Reino. Algumas traduções mencionam tb homossexuais, mas é uma tradução forçada e preconceituosa, que apareceu pela primeira vez em uma versão estadunidense da década de 1950 e foi, na edição seguinte da mesma versão, retirada por ter sido considerada uma deturpação do grego. Nem malakoi (traduzido na maioria das vezes como efeminados) nem arsenokoitai (majoritariamente traduzido como sodomitas) referem-se a homossexuais ou LGBTQIAP+, especialmente porque as letras da sigla mencionada revelam uma condição humana, não ações humanas. 

A escolha do uso de efeminados pelos tradutores antigos tinha a ver com alguém com fraqueza de caráter, que é o que se pensava da mulher naqueles tempos remotos, que, diga-se de passagem, é um outro preconceito. Sodomita era alguém devasso, participante de bacanais e cultos intermediados pelo sexo na cultura romanizada, que usava o sexo como instrumento de poder, dominação, manipulação, etc.

Mas não é só isso. Malakoi e arsenokoitai são somente dois exemplos de quem não herdará o Reino. Há muito mais. Mentirosos, injustos, homicidas, avarentos, invejosos, enganadores, soberbos, presunçosos, desobedientes aos pais, tímidos, sem misericórdia… e mais um monte. Se alguém está se sentindo incólume até aqui, é importante lembrar das palavras de Jesus: "Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Tolo’, será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco! ’, corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.21, 22).

E agora, que faremos? Se você ainda não está apavorado, peço que repare em “tímidos”. Ou leia “homicidas” lá em cima e compare com “qualquer que se irar contra seu irmão”.

O propósito óbvio dessa lista não é compilar os que estarão fora do Reino, mas evidenciar o fato de que ninguém, absolutamente ninguém herdará o Reino por mérito próprio. "Não há nenhum justo, nem um sequer” nos ensina o mesmo Paulo que escreveu a lista dos pecadores acima. “Sabemos que tudo o que a lei diz, o diz àqueles que estão debaixo dela, para que toda boca se cale e todo o mundo esteja sob o juízo de Deus. Portanto, ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à lei”. A lista condena todo mundo. Todo mundo. A salvação não está em estar fora da lista, porque ninguém está - a salvação está na graça, favor imerecido. Se estamos salvos de condenação é porque fomos “justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus” (Rm3).

Mas se você ainda está obstinado em condenar ao inferno a comunidade LGBTQIAP+ porque Jesus disse que há somente homem e mulher, quero lhe apresentar outra frase que saiu da boca de Jesus: “Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o” (Mt 19:11-12).

Eunuco, literalmente, era o cara que servia o harém. Subjetivamente, era um homem sem interesse por mulheres, ou alguém não hétero (lembre-se que a ideia contemporânea de homossexualidade não existia na época de Jesus, nem, obviamente, a expressão LGBTQIAP+, mas as pessoas com essas condições humanas existiam). Jesus elenca três tipos de eunucos: literalmente castrados por homens (para servir o harém), castrados com algum tipo de voto de celibato (por causa do reino do céu) e nascidos do ventre da mãe. Ora, o que se propõe aqui é que além de homens e mulheres, temos uma outra possibilidade. Jesus está falando o óbvio, porque sempre existiu gente assim, com uma sexualidade não heteronormativa. É a simples e objetiva constatação da realidade, como disse Silvio Almeida no discurso de posse no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania: “vocês existem e são importantes para nós”. O que disse Silvio Almeida, a igreja ainda não tem coragem de dizer. Ou a parte fundamentalista e moralista da igreja, que, infelizmente, é a barulhenta maioria, ainda não tem coragem de dizer.

Mas sabe uma coisa que a igreja fundamentalista, moralista e barulhenta diz? Ela diz o Salmo 139, e o diz com muito orgulho: “Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas!” (Sl 139).

Se “há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe”, não foram eles igualmente criados e tecidos de modo especial e admirável? Não são igualmente obras maravilhosas das mãos de um Deus que é amor? Algum cristão teria coragem de dizer que esses eunucos foram criados no ventre da mãe por demônios ou coisa parecida? Se são obras das mãos de Deus, teria Ele os feito para que fossem agredidos, calados, silenciados, convidados a anularem-se, a não serem quem foram feitos? Se foram feitos assim, não seriam naturalmente assim? Se assim são naturalmente, forçá-los a não serem o que são não seria contrariar a natureza, contrariar a criação, contrariar, portanto, o autor da criação?

Há quem diga que aceita a homossexualidade desde que anulada, afogada, represada, não praticada. O cara se esquece que a sexualidade humana é fisiológica! Não se anula ela assim num passe de mágica. Jesus cita três personagens distintos: o que foi feito pelo homem, o que se faz pelo reino, o que foi feito no ventre da mãe. São três personagens diferentes. Não há condenação sobre nenhum deles. Os três são naturalmente mencionados e naturalmente aceitos. Porque não se muda o que se é, como bem frisou Jeremias: “Porventura pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?” (Jr 13).

No início dos Atos dos Apóstolos, Filipe é colocado diante de um eunuco. Depois de ouvir sobre o amor de Jesus, perdão, reconciliação, graça, acolhimento, etc, fortemente tocado, quebrantado, maravilhado, enternecido, emocionado, o eunuco pergunta: "O que me impede de ser batizado?". A resposta é simples e direta: "Nada o impede".

Nada impede! Nem ao eunuco do harém, nem ao eunuco do reino, nem ao eunuco do ventre da mãe. Não há impedimento algum. Não há discurso moralista algum. Não há condenação alguma. É claro que não, porque somos todos “feitos de modo especial e admirável”, somos todos “obras maravilhosas” das mãos de Deus.

A porta de entrada do Reino é o amor. Aos que amam se dirá: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”.

Porque #OAmorVence

#OAmorVenceSC
#OAmorVenceSempre


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Para mais conteúdo, referências bíblicas, argumentos científicos e teológicos, leia Homossexualidade: da sombra da lei à luza da graça , de Hermes Fernandes.

Ou assista nossa entrevista para a Rádio Itaberá sobre Coletivo O Amor Vence, em Blumenau, por ocasião da participação do grupo como convidado no Piquenique da ONG Mães do Amor em Defesa da Diversidade, ONG criada para acolher mães, pais e famílias de comunidade LGBTQIAP+, em Blumenau. 

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