Essa ano a gente tá organizando, através do coletivo O Amor Vence, um Ciclo de Conversas com o tema Jesus e os Direitos Humanos. Serão 4 encontros com 4 subtemas: Pobreza, LGBTfobia, Machismo e Racismo. Cada encontro conta com a participação de 2 convidados - um militante do tema e outro para fazer a ponte entre o tema e Jesus, criando canais de diálogo, apoio e mobilização. Fiquei responsável por fazer essa ponte no tema 2, LGBTfobia. Abaixo a transcrição da minha fala.
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2º encontro do Ciclo de Conversas Jesus e os Direitos Humanos |
Jesus e a LGBTfobia
Vamos começar pelo começo, que é, na verdade, a única coisa que importa aqui na minha fala. Porque se o tema é Jesus e os DH, e a minha parte da fala é a parte focada em Jesus, interessa saber o que ele disse sobre o tema. E todo resto da discussão teológica ou da espiritualidade cristã deve ser filtrado pelo que ele disse. A bíblia é mãe de todas as heresias. Todos os horrores produzidos pelo cristianismo ao longo da história, cristianismo como religião, como instrumento de poder, de manipulação e controle de massas, como ópio do povo, tudo tem por trás argumentos retirados de textos bíblicos. Texto descontextualizado, é claro, texto distorcido, fruto de leituras mal intencionadas ou mal informadas, ou preconceituosas ou tudo isso junto. Por isso, pra falar de texto bíblico, é preciso ter uma referência, uma base, um fundamento a partir do qual a gente interpreta o texto e tenta tornar ele relevante para hoje. E se nosso interesse é falar de Jesus e os Direitos Humanos, a referência, a base, o fundamento tem que ser Jesus. Se não for ele, então a gente tá interpretando o texto a partir de outras coisas que não se podem chamar exatamente de cristãs.
E o que ele disse sobre esse tema?
Antes de saber o que, bom saber o contexto. Porque quando se fala em sexualidade, é muito presente o argumento de que hoje as coisas são piores do que eram no tempo de Jesus, e que hoje o mal e a devassidão e a perversão estão tomando conta do planeta e tal. Por isso é bom saber como as coisas eram no tempo de Jesus.
Jesus é um cidadão judeu, que cresceu na cultura judaica, com todas as suas referências morais e consequências éticas que são, até hoje, a base do que chamam por aí de valores judaico-cristãos. E era do interior, cresceu numa vilazinha que devia ser super conservadora como sempre são, ao longo de toda a história da humanidade, até os dias de hoje, todas as vilas e cidades interioranas, isoladas da efervescência das metrópoles.
É lá na vila de Nazaré que ele faz sua primeira fala pública, lendo o texto do profeta Isaías que diz:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para pregar o Evangelho aos pobres. Ele me enviou para proclamar a libertação dos aprisionados e a recuperação da vista aos cegos; para restituir a liberdade aos oprimidos e anunciar o ano da graça do Senhor” (Lucas 4).
Restituir a liberdade aos oprimidos, diz Jesus, e fazer os cegos, os que estão cegos pelo seu moralismo e seus preconceitos, verem. E ele diz que ele é o cara a quem o texto se refere. O pessoal que cresceu com ele, que conhecia ele desde piá, fica furioso, quer matar ele como herege, mas não mata.
E dali ele sai e segue.
Sai do interior conservador, fechado, protegido, moralista, e vai pras fronteiras. Zebulon e Naftali, Galiléia dos Gentios. E depois pra Cesaréia de Filipe, cidade profundamente romanizada. Se afastando dos ambientes onde viviam majoritariamente as famílias tradicionais de Israel com sua moralidade judaica e indo pras fronteiras mal vistas e mal faladas, onde havia todo tipo de influência estrangeira e pagã, com forte presença da cultura greco-romana, com as casas de banho, e sacerdotisas dos templos pagãos, as relações entre os jovens servos e seus senhores que vinham desde a Grécia antiga em um contexto de sexualidade absolutamente distinto do contexto judaico. Rolava de tudo. E Jesus vai pra lá. Mas, indo, não leva discurso moralista nenhum. Não tem nenhuma agenda moral. Ele não vai lá pra defender a família tradicional judaica da devassidão romana, não! Ele vai amar, e curar, e tocar, e aceitar, e perdoar toda aquela gente. E anunciar o ano da Graça do Senhor - uma referência ao Jubileu.
E aqui faço um aparte só pra comentar - vc nunca viu nem verá um amontoado de cristãos conservadores moralistas fundamentalistas defensores de família reunido na câmara dos vereadores pra defender a ideia do jubileu! Lutando por esse preceito bíblico mosaico, pra restaurar ele na nossa nação porque, afinal de contas, Deus acima de todos e tal. Sabe porquê? Jubileu é o perdão de todas as dívidas. Jubileu é a redistribuição de terras, de igual pra igual, pra todos. Pra anular o pecado do acúmulo de riquezas! Aconteceria a cada 50 anos, segundo a Lei de Moisés - a mesma Lei que serve de base para todo o tipo de fala preconceituosa e violenta dos ultraconservadores fundamentalistas. Esse é o Jubileu, o ano da Graça do Senhor. Já viu algum cristão conservador de extrema direita falar disso? Não viu nem verá porque o fundamentalismo moralista é profundamente seletivo e interesseiro.
Mas vamos voltar pra devassidão romana. Sabe o que Jesus encontra lá, no meio da balbúrdia pagã? Uma fé que jamais havia visto em Israel - é o que ele mesmo diz pra um centurião romano e pra uma mulher cananéia. Eu, que nos últimos anos tenho rodado por aí, do lado de fora dos muros protegidos das igrejas, posso dizer o mesmo. Vejo aqui gente com uma fé muito maior do que a que encontro nos templos. Gente que acredita e luta por um mundo mais justo - o ano da graça do Senhor. A jornada de Jesus pra longe do ambiente protegido da moral e bons costumes judeus foi sem nenhuma cruzada moral. Só com amor e graça.
E nesse contexto, sabe o que ele diz sobre os LGBT?
Nada. A não ser por uma rápida referência que vou comentar mais tarde.
Fora isso não diz nada porque nada tem a dizer, apesar de andar pelas cidades romanizadas onde valia tudo. Ele não tem medo da cultura grega, da moral romana, porque Ele ama. E onde há amor não há medo. O perfeito amor, lança fora todo medo - disse Jesus. Onde há amor, há acolhimento. Onde tem medo, tem cruzada, tem inimigo, tem arma, tem porta trancada, tem discurso inflamado de ódio, de desprezo, de nojo, de eliminação do outro, de julgamento e condenação do outro. Onde tem amor tem porta aberta, coração aberto, braço aberto, abraço, choro, perdão, alegria, dança, comunhão. Onde tem amor tem Deus, tem Jesus. Onde tem medo, não - nem um, nem outro.
Mas então porque tanta raiva, porque tanto medo, porque tanto nojo, porque essa cruzada moralista? E aí a gente chega num movimento político. No ressurgimento de uma agenda de extrema direita que é toda ela baseada no medo - medo de perder os privilégios de séculos e séculos de dominação do homem branco hétero etc, etc. Esses caras têm medo! O medo mobiliza eles, e eles sacaram que a melhor arma que eles têm é espalhar o medo por todos os lados. Pânico moral! Unir todos ao redor de um pavor comum. Então eles criam fantasmas e monstros e espalham por aí o terror. Era o que acontecia na Idade Média, foi o que aconteceu no nazifascismo europeu e a gente achava que não tinha como acontecer de novo até que chegaram os celulares e as mídias sociais. E aí os caras transformaram essas ferramentas tecnológicas em plataformas de difusão de medo - através da mentira e da desinformação.
A agência LUPA fez uma série de reportagens esse mês por conta do Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia - Arco-íris sob ataque. Foi uma investigação sobre os caminhos do preconceito contra LGBTQIAPN+ nas redes, analisando 11mil publicações em 12 meses. Abaixo um resuminho:
- As duas expressões principais: Família Tradicional como a encarnação da perfeição e a 'Ideologia de gênero' como a encarnação do mal.
- A difusão massiva de teoria conspiratória de que as pessoas LGBT+ se uniram não só nas Américas, mas em todo o planeta, para atacar — e acabar — com a “família tradicional” composta por um homem e uma mulher.
- Ataques ao filme da Barbie, associando-o à pedofilia.
- Ataques à Educação sexual nas escolas, acusando-a de 'doutrinação gay' (sendo que 80% das violências sexuais são praticadas por parentes próximos - educação sexual protege famílias, protege crianças!).
- Há conteúdos que "explicam" as cores da bandeira LGBT+ associando-as a Satanás, sodomia e mutilação sexual.
- A agenda 2030 da ONU é divulgada como "um governo mundial" disposto a "semear a ideologia de gênero entre as crianças".
- Acusações — explícitas e implícitas — de que as pessoas LGBT+ querem perverter as crianças são constantes, com hashtags tipo #LutaContraAMáfiaPedófila ou #ComMeusFilhosNãoSeMeta e falando de uma imaginária "normalização da pedofilia".
Os caras acreditam em tudo isso. Se deixaram engolir pela mentira e desinformação e estão apavorados, adoecidos e enlouquecidos. E é mais que desinformação, tem um abundante conteúdo de ódio, de incitação à violência. O que é meio óbvio mesmo, porque ódio e violência são filhos do medo, consequência dele. Quem tem medo mata.
“Pelos frutos os conhecereis”, diz Jesus. Os frutos dos que se acham defensores da família têm sido medo e ódio, pânico, adoecimento de alma.
Enquanto isso, Jesus diz ainda hoje o que disse 2mil anos atrás, na rápida referência que mencionei antes:
“Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos, por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o” (Mt 19:11-12).
Eunuco, literalmente, era o cara que servia o harém. Subjetivamente, era um homem sem interesse por mulheres, ou alguém não hétero (lembre-se que a ideia contemporânea de homossexualidade não existia na época de Jesus, nem, obviamente, a expressão LGBTQIAPN+, mas as pessoas com essas condições humanas existiam).
Jesus elenca três tipos de eunucos: (1) literalmente castrados por homens (para servir o harém), (2) castrados com algum tipo de voto de celibato (por causa do reino do céu) - importante lembrar que pra esse negócio de celibato funcionar, o celibatário deve ser a letra 'A' das letrinhas acima, de assexual, que é quem tem pouca ou nenhuma atração sexual - e (3) nascidos do ventre da mãe.
Ora, o que se propõe aqui é que além de homens e mulheres, temos uma outra possibilidade. Jesus está falando o óbvio, porque sempre existiu gente assim, com uma sexualidade não heteronormativa. É a simples e objetiva constatação da realidade, como disse Silvio Almeida no discurso de posse no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania: “vocês existem e são importantes para nós”. O que disse Silvio Almeida, a igreja ainda não tem coragem de dizer. Ou a parte fundamentalista e moralista da igreja, que, infelizmente, é a barulhenta maioria, ainda não tem coragem de dizer.
Mas sabe uma coisa que a igreja fundamentalista, moralista e barulhenta diz? Ela diz o Salmo 139, e o diz com muito orgulho: “Tu criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe. Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas!” (Sl 139).
Se “há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe”, não foram eles igualmente criados e tecidos de modo especial e admirável? Não são igualmente obras maravilhosas das mãos de um Deus que é amor? Algum cristão teria coragem de dizer que esses eunucos foram criados no ventre da mãe por demônios ou coisa parecida? Se são obras das mãos de Deus, teria Ele os feito para que fossem agredidos, calados, silenciados, convidados a se anularem, a não serem quem foram feitos? Se foram feitos assim, não seriam naturalmente assim? Se assim são naturalmente, forçá-los a não serem o que são não seria contrariar a natureza, contrariar a criação, contrariar, portanto, o autor da criação?
Há quem diga que aceita uma pessoa LGBT+ desde que sua sexualidade seja anulada, afogada, represada, não praticada. O cara se esquece que a sexualidade humana é fisiológica! Não se anula ela assim num passe de mágica. Paulo, que era solteirão e aparentemente mantinha algum tipo de voto de castidade, sabia disso, porque isso é óbvio, por isso ele aconselhava a rapaziada dizendo: “gostaria que todos fossem como eu (...) mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo”. E isso vale pra todo mundo, hétero e não hétero, cada um na sua condição.
Jesus cita três personagens distintos: o que foi feito eunuco pelo homem, o que se faz pelo reino, o que foi feito no ventre da mãe. São três personagens diferentes. Não há condenação sobre nenhum deles. Os três são naturalmente mencionados e naturalmente aceitos. Porque não se muda o que se é, como bem frisou Jeremias:
“Porventura pode o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?” (Jr 13).
No início dos Atos dos Apóstolos, Filipe é colocado diante de um eunuco. Depois de ouvir sobre o amor de Jesus, perdão, reconciliação, graça, acolhimento, etc, fortemente tocado, quebrantado, maravilhado, enternecido, emocionado, o eunuco pergunta: "O que me impede de ser batizado?". A resposta é simples e direta: "Nada o impede".
Nada impede! Nem ao eunuco do harém, nem ao eunuco do reino, nem ao eunuco do ventre da mãe. Não há impedimento algum. Não há discurso moralista algum. Não há condenação alguma. É claro que não, porque somos todos “feitos de modo especial e admirável”, somos todos “obras maravilhosas” das mãos de Deus.
A porta de entrada do Reino é o amor. Aos que odeiam se dirá, “apartai-vos de mim, porque nunca os conheci”. Aos que amam, “vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”.
Porque #OAmorVence.
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