6 de dezembro de 2007

Naquele instante

Quem entrasse ali, naquele instante, veria somente o corpo curvado e fraco daquela mulher, com seu olhar fixo, perdido em algum ponto do infinito. Veria o rapaz acolhendo em seu peito seus cabelos brancos, acariciando-os, com os olhos cheios d´água. E ouviria, angustiado, o gemido senil que escapava constante e descontrolado da boca semi-aberta daquela mulher. Veria o momento. Tão somente a agonia do momento.

Quem entrasse no quarto, naquele instante, não veria os bolos e confeitos, não sentiria o cheiro vindo do forno ainda quente, nem o sabor das sobras de merengue embrulhadas carinhosamente em pedaços de plástico triangular, com um pequeno furo na ponta. Não tomaria banhos de tacho na varanda, nem veria as migalhas de pão sendo lançadas todos os dias aos passarinhos. Não pensaria nas balas, nos doces, no charuto de repolho ou na sopa de feijão, com aquele caldo cremoso. Não sonharia com os sorrisos, a generosidade graciosa, a simplicidade, o amor e o carinho que transbordaram daquela vida durante 94 anos. Tão pouco lembraria da casinha, nos fundos do casarão. Dos raios de sol batendo na cadeira de balanço, do abraço caloroso oferecido a todos e a qualquer um por aquele lar, sempre de portas abertas, onde viveu aquela mulher. Nem saberia que não houve nunca em lugar algum, lugar tão acolhedor como aquele. E não sentiria o toque carinhoso e incansável dos dedos macios, dançando suavemente sobre suas costas. Não ouviria o canto do relógio cuco, nem as histórias absurdas inventadas por ela e contadas como a mais pura verdade, como sobre o noivo, general morto em combate na guerra do Paraguai. Nem veria o sorriso maroto no fim de cada história mirabolante.

Quem entrasse naquele quarto, naquele instante, veria somente o rapaz acolhendo em seu peito os cabelos brancos daquela mulher, que agora também chorava e o acariciava como antes, esperando ansiosa pela chegada do seu último poente.

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Para a Ica.
Que não teve filhos nem netos.
Mas que foi minha mãe e minha avó.
Em memória.

3 comentários:

  1. Cara, como temos coisas boas pra lembrar. Como sou grato a Deus por termos tantas pessoas especiais por quem chorar de saudades.

    É uma dádiva que nem todos podem ter, mano.

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  2. Noh kra...


    parece que vc tinha um rarinho mt grande por essa senhora...


    interessante sua Naração, mt bonita!


    abração
    t++

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  3. Você escreve com poesia, uma beleza. Parece até uma fotografia em preto e branco, um filme de Almodóvar.

    Saudades da Ica. Você foi realmente o neto que ela não teve. Era com grande alegria que ela sempre falava em você.

    E foi bonito de ver como você nunca a abandonou, visitando-a no lar de idosos mais vezes do que nós que morávamos na mesma cidade...

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