10 de junho de 2008

Queda livre

Incríveis histórias medíocres de montanha - a série

3.
O tempo estava perfeito. Céu azul, vento fresco, intensidade média, soprando continuamente do litoral. Ao meio-dia teria um almoço gostoso na casa de quem, um ano depois, viria a se tornar meu sogro. Tínhamos que sair cedo e voltar rapidamente. O tempo estava tão perfeito que dispensamos tudo que o bom senso exige. Rumamos ao descampado da decolagem de sandálias, bermuda e camiseta, abandonamos o rádio comunicador em casa e, pra fechar com chave de ouro, voávamos sem o pára-quedas reserva, que, aliás, nunca tivemos. Afinal, o que poderia dar errado?

Vôo livre no litoral costuma ser coisa tranqüila. O vento que vem do mar sopra lisinho, sem as turbulências do relevo e variação de temperatura do interior, onde bolhas invisíveis de ar quente se desprendem do solo fazendo a festa dos urubus e parapentes. Qualquer morro com um desnível razoável voltado para o mar faz o vento subir, acompanhando o relevo e mantendo os voadores por longas horas no ar.

Nessas condições, era importantíssimo manter viva na cabeça a idéia do almoço ao meio-dia, para não cometer a infração do atraso, falta gravíssima na família da mulher com quem eu pretendia me casar.

Abrimos as velas na encosta, nos conectamos a elas e corremos, numa espécie de ameaça de suicídio, em direção às ondas que rebentavam nas rochas. Foram necessários poucos passos antes do corpo ser arrancado do chão e lançado aos céus. O vento era suficiente para nos manter no ar, mas não tinha forças para nos levar além da crista da pequena serra litorânea. Vagamos num vai e vem celestial por alguns minutos, quando resolvi aproximar-me da encosta para ampliar meus horizontes. Guloso, insatisfeito com tudo que já tinha, queria ir além e vislumbrar as praias que se escondiam ao norte, atrás daquele morro.

Aqui é preciso um rápido esclarecimento para quem não sabe como funcionam os inquietos ventos na superfície do planeta. O deslocamento de ar que avança sobre um relevo o acompanha, como não é difícil de imaginar. O vento que bate na face de um morro, sobe esse morro e, por estar subindo, mantém parapentes, urubus e folhas secas no ar. É o que chamamos tecnicamente de lift. O interessante aqui, e que merece todo destaque nessa história, é o que acontece com esse vento logo atrás do morro. Como ele passa em velocidade pelo ponto culminante do relevo, logo atrás deste cria-se uma espécie de vácuo que suga o próprio vento para baixo. O ar então se choca novamente contra o relevo e sobe outra vez, mas no sentido contrário. Isso é tecnicamente chamado de rotor. Dá pra imaginar que nem urubus e muito menos parapentes - que não podem bater asas pra se safar - gostariam de entrar em uma região de rotor. Esclarecido isso, podemos continuar.

Como o vento não tinha, naquele momento, intensidade suficiente para me levar acima do cume à uma distância segura dele, aproximei-me para forçar essa altura. Manobra de sucesso. Observei todo faceiro as praias do norte, considerando-me um espertalhão. Foi quando meu aguçado senso de responsabilidade lembrou-me que o almoço no sogro já deveria estar quase sendo servido. Aprumei o parapente na direção do pouso e... nada. Não saí do lugar. Misteriosamente, bem na linha do cume, a poucos e ameaçadores metros da região de rotor, exatamente naquele infeliz momento, o vento aumentou de intensidade. Um parapente não pode voar contra o vento se a intensidade dele for maior que a velocidade da vela. Pois foi justamente o que aconteceu. O vento começou a levar-me para trás, em direção ao rotor, enquanto meu olhos arregalavam-se.

Daí em diante, iniciou-se um devastador processo de afloramento do mais puro desespero. Cerca de cem metros à frente e alguns abaixo de mim, estava meu parceiro de vôo. Tomado de incontrolável pavor, iniciei com ele um profundo diálogo, aos berros:

- Tô indo pro rotor!
- Acelera!
- Tô acelerando!
- Acelera com tudo!
- *@#&!
- Vira!
- Já virei! Tô entrando no rotor!
- Acelera!!!
- *@#&!!!!! Rotor! Rotor!

Com um leve solavanco, iniciou-se a fase 1 da máquina de lavar roupa, quando o motor aos poucos vence a inércia e começa a chacoalhar aquele monte de tecido. A partir daí, a roupa sabe que não há como escapar. Depois de longos segundos de chacoalhões e solavancos, a vela, que antes me sustentava graciosamente, transformou-se em um horrível pano de chão, que batia ao vento como a bandeirinha que penduramos na antena do carro em época de copa do mundo. Abaixo de mim cresciam loucamente as árvores, com suas bocas escancaradas e dentes a mostra, salivando, prontas pra me devorar.

Eu devia estar a pouco mais de cem metros de altura no momento em que a vela fechou e comecei a despencar como aquela maçã que caiu na cabeça de Isaac Newton. Quando, de olhos espremidos e com todos os músculos tensionados, estava pronto para libertar meu espírito do corpo espatifado, milagrosamente a mão de um anjo puxou a ponta da vela pra fora do emaranhado de linhas. Senti inesperada e redentora pressão no corpo e, ao invés de cair como uma pedra, fui lançado à frente, atravessando algumas copas de árvores, rompendo galhos, rasgando a pele, comendo folhas, até encontrar de frente o suave tronco de uma palmeira.

Os segundo que se seguiram foram inundados de profunda paz, até que a pele, os nervos e especialmente o joelho, que foi a primeira parte do corpo a encontrar-se com o tronco da palmeira, começaram a gritar.

Era perto do meio-dia. Meus pais em uma casa e meus sogros e minha noiva em outra, com o almoço quase pronto, observavam de longe a dança dos parapentes no céu, quando um deles, estranhamente, desapareceu. O almoço, definitivamente, iria atrasar.

Esperei cerca de meia hora até que o corpo tivesse novamente condições de responder às ordens do cérebro sem vibrar como uma taquara verde. A vela havia enroscado na copa das árvores e eu estava pendente, há 3 metros do chão. Imaginei absolutamente improvável que me encontrassem ali. Apesar da dor, cri que a melhor saída seria tentar chegar à praia por conta própria. Caminhei por 6 horas, chegando bem próximo do desespero quando a noite caía. Tive que atravessar imensas ilhas de ‘capim navalha’. Estava tão cortado que lembraria de longe a figura do Cristo do Mel Gibson. O sangue coagulado na pele, misturado com mato, poeira, lama e suor, me dava o aspecto de algum personagem de filme de terror trash.

Quando eu já não suportava mais o cansaço e os últimos lampejos de claridade eram vencidos pela noite, dei de cara com uma enorme pedra cercada de bromélias espinhentas bloqueando completamente o caminho. Teria que fazer uma grande volta para desviar essa parede de rocha e espinhos. Procurei, completamente desanimado, por alguma outra alternativa, e percebi um pequeno buraco na base da rocha. Olhando de perto, pude ver um fiapo de claridade do outro lado, alguns metros abaixo de onde eu estava. Sem forças para refletir, me joguei buraco adentro e deslizei até a luz do outro lado. Parei numa espécie de gruta e já pensava seriamente em só levantar dali no dia seguinte quando, com o canto do olho, encontrei a salvação.

Uma boa dose de novo ânimo me encheu de forças. Um cano de captação de água saía debaixo da grande rocha e descia a encosta do morro absolutamente à mostra. Segui o caninho por uns 20 minutos até uma caixa d´água, que dava no quintal de uma casa. Alguns homens que tomavam chimarrão no quintal, jogando conversa fora, me viram descer rolando o barranco e atravessar seu quintal cambaleante. Me acompanharam com os olhos arregalados e ainda me permitiram beber uns goles de água na torneira do jardim. Eu sabia exatamente onde estava agora. Há 200 metros dali estava meu carro, e a chave permanecia heroicamente no bolso da bermuda.

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O sol já havia desaparecido no poente, e o denso azul petróleo subia do mar começando a descortinar as primeiras estrelas. Desci do carro e caminhei pela praia até a pousada onde meus pais estavam hospedados. Passava das 19 horas. Vi meu pai em pé, com a água do mar lambendo seus pés e o olhar perdido no horizonte. Meu sobrinho estava em seu colo. Cheguei mancando mansamente até ele e toquei suas costas, sem dizer uma palavra. Estava cansado demais para falar. Meu pobre, sensível e pessimista pai, que a essas alturas já imaginava como seria a vida dali para frente sem o filho caçula, não resistiu àquela estranha visão. O corpo disforme, sujo, ensangüentado e descabelado, na penumbra do poente, deve ter-lhe parecido com alguma aparição bizarra. Despencou no chão levando junto meu sobrinho. Mas no instante seguinte já estava em pé, me deixando na praia com a criança enquanto corria para avisar os outros sobre a novidade.

Em seguida tomei o mais dolorido banho de mar da minha vida, e um terrível banho de água oxigenada para purificar.

No dia seguinte, com as calças e meias grudando nas feridas das pernas e pés, ainda fui com meu parceiro fiel buscar os restos mortais do parapente.

Nunca mais voei de sandálias.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

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