5 de fevereiro de 2009

O tempo

Crônica Kaiowá

Quando cruzamos os limites da aldeia, superamos apenas o primeiro, e certamente o mais simples, dos obstáculos que teríamos que superar. Um muro enorme e absolutamente intransponível, no curto período de que dispúnhamos, mantinha-se rijo e imponente em nosso caminho. Não um muro simples e plano, mas uma intrincada parede infestada de relevos e formas estranhas como um labirinto vertical.

Abandonamos a neurose de produção, a loucura dos prazos e a enebriante ansiedade dos resultados e nos espatifamos em uma parede que erguia-se como largo muro de arrimo a conter todo o peso da insanidade que construímos.

Do lado de lá, dentro da aldeia, onde imagens de pobreza, sofrimento, miséria e sujeira nos queimavam a retina, onde álcool, violência e drogas corroíam famílias como ferrugem, destruíam um povo como câncer, onde o forte oprimia cruelmente o fraco devorando-o vivo como gafanhoto, descortinava-se também um inimaginável outro mundo. Um mundo onde é permitido a todos e a qualquer um, em qualquer momento, sentar à sombra de uma mangueira, com uma cuia de mate na mão, e conversar. Onde cada frase é precedida de longos momentos de respeitoso silêncio e contemplação, e os compromissos não são como pesadas cargas lançadas sobre o lombo de infelizes prisioneiros do tempo, do relógio, de incontáveis responsabilidades. Não, daquele lado do muro o tempo é outro, marcado tão somente pela aurora e pelo entardecer. E os compromissos são subordinados ao momento. Lá, o que se vive tem maior valor do que o que se irá viver. O hoje tem maior valor que o amanhã. ‘A cada dia basta seu próprio mal’, é a batida do coração kaiowá. Batida semelhante à do mestre – ‘não andem ansiosos com o dia de amanhã’.

Quando olhei no relógio e disse à Kuerai E’pa que precisava ir; quando deixei-o com sua cuia à sombra da mangueira e parti rumo ao meu compromisso; quando olhei para trás e o vi já pequeno, sentado na mesma posição, sozinho, sorvendo o mate e olhando o céu; quando percebi que ele permaneceria ali, desfrutando o instante, contemplando a criação de Nhandejara, só então percebi como deveria parecer-lhe estranho. Naquele instante me vi a partir de seus olhos e considerei-me louco. Então, enquanto caminhava apressado, ouvi uma voz suave sussurrando em mim: olhe os pássaros, veja os lírios do campo, aprenda com Kuerai E’pa ao pé da mangueira. Ao som dessa voz quase inaudível olhei de novo para trás procurando-o, mas já o tinha perdido de vista. Voltei-me novamente adiante, fitando o relógio. Sabia que não poderia voltar atrás. Tinha um compromisso e estava atrasado. Precisava correr.

Kuerai e’pa. Paciência
Nhandejara. Deus




"...Estava certo
De que tudo o que eu dizia
Representava a verdade
Pra todo mundo que ouvia

Foi quando um velho
Levantou-se da cadeira
E saiu assoviando
Uma triste melodia..."

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Nossa única esperança de redenção

A vaquinha e a mansão

2 comentários:

  1. Anônimo5:21 PM

    também quero ser assim ndo crescer.

    simplesmente simples...

    abraços

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  2. É Gaby. Tomara que um dia a gente cresça.

    Valeu.

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