18 de julho de 2016

Extermínio

Em longa reportagem especial, jornalistas revelaram as histórias de alguns dos 481 focos ativos de tensão e violência no interior do Brasil. Segundo a reportagem, "pelo menos 1.309 pessoas foram assassinadas em conflitos rurais no Brasil, desde 1996".

A matéria mostra "um universo composto por tortura, incineração de corpos, chuvas de veneno, suicídios de índios, violência contra mulheres, ônibus escolares na mira de fuzis, esquema de venda de licenças, pistolagem paga por planos de manejo e tabelas de execuções".

Já ouvi dizerem que as disputas fundiárias mostram que o interior do país está em guerra, mas não é possível concordar com tal leitura dos fatos. Uma guerra pressupõe uma disputa entre dois lados onde, mesmo com alguma diferença substancial de poder de fogo, ambos sonham com a possibilidade de vencer. Os conflitos fundiários do Brasil demonstram não uma guerra, mas um genocídio onde "97% das mortes são de camponeses e indígenas".




Sem exagero. Está acontecendo agora, 
debaixo do seu nariz, por pistoleiros, o extermínio de
uma nação nativa 
a mando de fazendeiros




Isso, evidentemente, não é novidade nenhuma. As populações indígenas, por exemplo, vem sendo sistematicamente exterminadas em ondas de ataques que mancham de sangue nativo nossa história. A estatística não colabora para revelar as atrocidades, porque no mundo do campo as mortes oficialmente registradas são apenas uma amostra do horror real. Nas 434 vítimas oficialmente identificadas (mortos e desaparecidos) do Regime Militar, por exemplo, não está contabilizado o genocídio indígena patrocinado pelo Estado no período. Estimativa bem subestimada aponta pra 8.350 índios mortos. Se quiser ficar bem chocado leia o relatório completo da Comissão Nacional da Verdade no capítulo Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Mas o genocídio não encerrou-se com o fim da ditadura. Ele segue como um fantasma assombrando camponeses e índios no interior do país.

O que não é difícil constatar, é que o Estado se coloca oficialmente contra os índios, como explicou direitinho Artionka Capiberibe, e também contra os camponeses à espera do pedaço de terra prometido na Constituição de 88 e até hoje, sistematicamente, friamente e cruelmente negado.

As 3 amigas.

A reportagem especial sobre os conflitos fundiários é toda ela chocante, toda ela assustadora, mas para mim, pessoalmente, nada causa mais comoção do que o visível e revoltante extermínio de Guaranis Kaiowás. É isso mesmo. Sem exagero. Está acontecendo agora, debaixo do seu nariz, o extermínio de uma nação nativa por pistoleiros a mando de fazendeiros.

Já contei aqui que estive entre os kaiowás, com minha esposa e filhos. Convivi, brinquei, ouvi e contei histórias, ri e chorei com eles. Os acampamentos onde kaiowás estão agora mesmo sendo encurraladas e mortos são vizinhos da aldeia Taqwaperi, que visitei. Em cada matéria que sai sobre as ações dos fazendeiros contra esses acampamentos, leio os nomes e vejo as imagens das vítimas assustado, na expectativa de reconhecer alguém. Algumas das crianças que brincaram com meus filhos e que aparecem nas fotos que enfeitam a parede do quarto da minha filha, porque ela gosta de tê-las na memória, porque ela tem boas lembranças de suas amigas kaiowás, podem ser as próximas vítimas. Temo que sejam e temo que, se forem, eu nem mesmo fique sabendo, porque morte de índio (ou de camponês sem terra) é, no máximo, notícia de rodapé. Temo, enfim, que ninguém saiba. Temo ainda mais, que ninguém se importe. Por enquanto, tristemente, tem sido assim.


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Leia também:
Crônica Kaiowá
Terra Bruta - A reportagem completa
O Estado contra os índios

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