30 de outubro de 2007

Catedral


Catedral Metropolitana de Ribeirão Preto
Upload feito originalmente por †oŋ
A noite avança rapidamente, voraz, abocanhando cada minuto. Os oito, reunidos em torno da mesa, conversam alheios ao tempo. São dois anciãos e os frutos de sua semente. Os frutos de seus frutos surgem eventualmente ali, ora afoitos, ora chorando alguma angústia da infância, ora simplesmente de passagem.

É possível, nesse instante, vencer a dureza do tempo e transportar-se através dele. Vê-se a mesa cheia, os anciãos ainda jovens, seus frutos verdes, o cheiro da comida, as risadas agudas da infância, o suco derramado, restos de comida espalhados no chão. Hoje, os frutos maduros tomaram o lugar dos pais. Eles é que têm à mesa pequenos frutos verdes e risadas agudas e comida espalhada.

Mas não naquele momento.

Ali, os oito ao redor da mesa são novamente como antes, mesmo os que chegaram mais recentemente. Conversam todos e todos riem, lembram, contam, confundem-se nas histórias, deitam no chão, enchem os olhos de lágrimas, se calam, falam solenemente e riem de novo, e abrem seus corações.

Enquanto falam, não percebem a presença dos anjos que descem assombrados e os rodeiam em reverência. Não percebem a nuvem que pousa ao redor deles, nem as torres que se erguem do meio daquela sala tão conhecida, que abrigou quatro gerações e que recentemente deu adeus aos mais antigos. A sala, que outro dia lhes parecia tão vazia, enche-se novamente. Absortos em seus assuntos, em suas vidas, em suas almas, em suas angústias e alegrias, não percebem que as janelas brancas de ferro, descascadas pelo tempo, transformam-se lentamente em inarráveis vitrais. Não vêem que a luz da lua deita sobre eles os reflexos dos vidros e todas as suas cores e formas. Não vêem que os anjos começam a louvar o altíssimo, estarrecidos, como uma platéia que contempla o mais belo espetáculo e todos os seus efeitos especiais. Não percebem, enquanto falam, que ali, naquele instante e naquele local, convergem passado, presente e futuro, e o Eterno se faz presente entre eles. E desfrutam todos, entre os anjos e na presença do Eterno, do banquete que hão de desfrutar ainda em outra ocasião, na presença da primeira geração, do casal que construiu essa sala, que há pouco ainda sentava-se entre eles, mas que recentemente partiu.

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Jorge Camargo - Expressão de Sentimento.mp3


Expressão de Sentimento
Jorge Camargo no CD "O Chamado"



Nossas palavras são tão pobres pra expressar o sentimento, a emoção
De estarmos juntos, mesmo intento, mesma voz e mesmo canto, celebração
E recebermos entre nós o Deus eterno, terno e santo, adoração
E repartirmos nossas vidas, alegrias, dores, medos, em comunhão

É como o céu tornado em chão
Como se a lua e as estrelas
Se abraçacem pra mostrar que se respeitam e amam
Como diria Paulo, apóstolo
A igreja é como um palco
Onde os anjos se contemplam e perguntam

Como Deus pensou assim:

Jesus em nós manifestado
Jesus por nós anunciado

17 de outubro de 2007

Testemunho de morte

Temos fé num Deus que há de nos salvar. E quanto antes melhor. Aliás, é bom que seja logo, senão nossa fé balança. Desde guri que ouço os mais variados testemunhos nos mais variados tipos de reunião que as igrejas promovem. Todos, absolutamente todos, salvo engano, falam de vitória. Parece-nos que esse é nosso único motivo para testemunhar. Falamos sempre da vida melhor que temos, imaginamos ter ou, pior, fingimos ter. Enchemos o peito para falar do emprego que ganhamos, da bênção - seja lá qual for a definição que damos a ela - da saúde, da alegria, da dor de cabeça que não tomou Doriu, mas sumiu. Esse é nosso testemunho. É por essa via que tentamos convencer crentes e descrentes de que ser cristão vale a pena.


É interessante observar que o Novo Testamento registrou, na maioria das vezes, a antítese desse pensamento. O testemunho de Paulo, de maneira impensável, era de dor, perseguição, sofrimento, angústia e morte. E era um testemunho compartilhado pela a turma de Tessalônica, pelos demais apóstolos e, possivelmente, pela grande maioria dos cristãos do seu tempo. Mas o mais marcante, a provocação maior, a verdadeira pedra no sapato, é o testemunho do próprio Deus. Jesus viveu e, consequentemente, testemunhou dor, angústia, sofrimento, intemperança, pobreza, solidão, perseguição... e morte. Encarou de frente cada um dos sentimentos dos quais nós fugimos como o diabo da cruz. Aliás, quem não foge da cruz? Fugimos todos, numa correria desenfreada rumo ao conforto e a segurança. E eu vou na frente, que ninguém me segure.


O convite de salvação que nos foi feito, apesar de consumado por Cristo na cruz, delegou-nos a responsabilidade de estender a salvação ao próximo pela mesma via que o Mestre estendeu-a a nós - o sacrifício da nossa vida em favor da vida alheia. O caminho de fé que devemos seguir é o caminho de ceder nossos ouvidos, nossos abraços, nosso tempo, nossas lágrimas, nossos sorrisos, nossa casa, a quem está perto de nós, a quem está carente, a quem não tem nada a nos oferecer além da sua dor. Sorrir com os que se alegram, chorar com os que choram.


Nossa fé deveria estar direcionada não para um Deus que nos salva, mas para um Deus que salva através de nós – e apesar de nós. Através, porque somos o instrumento que deveria estar tocando a doce música do amor de Cristo por aí. Apesar, porque dependemos dele e da sua graça para segui-lo.


Os testemunhos de vitória tem sido, cada vez mais, motivo de nos afastarmos do chamado de Deus à entrega. Falta, entre os cristãos, o velho e bom testemunho de morte, que nos iguala a todos, nos coloca no mesmo barco, como irmãos, lutando todos para salvar a todos e, quem sabe, até o próprio barco.

11 de outubro de 2007

Estar

Ao longo da história do cristianismo, a música sempre refletiu a teologia do seu tempo. Nos tempos do cristianismo bélico da reforma, um belo hino que se cantava tinha essa piedosa estrofe:

"Somos os poucos eleitos do Senhor
Que todos os outros sejam condenados
Há espaço suficiente para você no inferno
Não queremos um céu abarrotado"

Estrofe de um hino batista calvinista
[Timothy George - Teologia dos Reformadores - 1994 - pg 231]


Hoje em dia, se você entrar em uma livraria evangélica e dedicar uma pequena fatia do seu precioso tempo para escutar os CDs mais vendidos (peça ao vendedor que os indique), poderá perceber, não sei se rindo ou chorando, o que está rolando por aí.

Até mesmo boas músicas são, graças ao imaginário popular, alvo de interpretações negativas. Um bom exemplo é a frase de uma interessante canção que diz: “meu maior desejo é estar onde Jesus está”. A frase tem seu valor. Pode sim, ser encarada com nobreza. O problema está na definição e conotação. No imaginário popular cristão, estar onde Jesus está é "estar na igreja", no encontro, na campanha, no mover, na visão. O símbolo maior da presença do Cristo ressurreto é o torpor do corpo que vibra em um êxtase de emoções descontroladas, no meio das músicas/mantras cristãos que alimentam a congregação.

Mas esse dificilmente seria um lugar onde Cristo estaria. Pelo menos não parece o tipo de lugar que ele freqüentou em carne e osso.

Na verdade, a proposta de Jesus foi outra. Ele não queria que nós estivéssemos onde ele está, mas que ele estivesse onde nós estamos. Pode parecer uma diferença sutil, mas não é. É absolutamente essencial. Porque, afinal de contas, nós fazemos nossos amigos e inimigos, mas foi Deus quem fez nosso vizinho. E é ali, com nosso vizinho, com quem está do nosso lado a cada momento, a cada instante, que Jesus deve estar presente e fazer a diferença.

Está todo mundo careca de saber que o lugar predileto de Jesus era entre os fracos, pobres, cansados, pequeninos. Ele declara ousadamente que é entre esses que nós deveríamos estar, como tão bem observou aquela andarilha das mercês.

Mas nós queremos mesmo é a glória.

2 de outubro de 2007

Clube da Luta

Se alguém muito mau, de dentro de uma cadeia quisesse neutralizar seus inimigos, não seria brilhante se conseguisse confundí-los a ponto de ficarem correndo em círculos, socando o ar, gritando palavras de ordem para ninguém?

E, melhor ainda, se conseguisse incutir neles a sensação de estarem sob permanente ataque e perigo, de maneira que nunca conseguissem descansar? E que tal, para fechar com chave de ouro, se conseguisse fazê-los sentirem-se ora culpados pelos fracassos nessa luta imaginária ora extremamente orgulhosos pelos aparentes sucessos?


E se eles passassem a se reunir periodicamente para falar sobre suas lutas, sucessos e derrotas? E se começassem a escrever manuais e livros ensinando como dar golpes no ar ou bradar contra o vento? E ensinassem seus filhos, desde cedo, a caminharem sempre preocupados, com medo, vigiando o "perigo" que se esconde em cada esquina?

Imagine se, além disso tudo, eles passassem a levar essa luta imaginária tão a sério, que não tivessem mais tempo de socorrer os companheiros que de alguma maneira acabaram ferindo a si mesmos, nem os que necessitam de qualquer tipo de ajuda. Não tivessem tempo nem ao menos para perceber que seus ferimentos não são causados pelo inimigo, mas sim por seus prórprios esforços violentos em vencer alguém que não é mais ameaça simplesmente porque já foi, há muito, derrotado.