Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
9.
O pessoal tinha vindo de Foz do Iguaçu para, enfim, escalar em uma montanha de verdade. Lá no terceiro planalto, tudo que tinham eram as falésias do rio Paraná, dentro do Parque Nacional do Iguaçu, e o ‘Monumento das Três Fronteiras’, construído com blocos de rocha, onde dava para brincar um pouquinho. É verdade que escalar no leito do rio, com as Cataratas ao fundo, é uma experiência muito interessante. Sem falar que, na época, o acesso ao parque era gratuito para o pessoal da associação de montanhismo. Já existiam dezenas de vias lá, de vários graus e estilos. Entre uma e outra escalada, ainda dava pra ver os turistas subindo o rio nos botes infláveis do Macuco, em direção às quedas d´água espetaculares que, de alguns pontos, podíamos ver escalando. Mas montanha mesmo não havia nenhuma por lá.
Enchemos meu fusca branco, o carro mais valente que já tive, e descemos a serra com um objetivo claro. A Última Terra de Malboro, na Esfinge, era um sonho para todos nós. Cinco adultos e todas as mochilas, com todos os equipamentos necessários, não eram pouca coisa para meu possante veículo, mas ele agüentou firme. Íamos em duas duplas bem integradas para a parede, e o quinto elemento do grupo seguiria caminhando pela Noroeste. Nos encontraríamos novamente na estação, no fim do dia.
Para manter o protocolo, segui à risca as dicas até a base da via, mas acabei na via errada. Gastamos as pontas dos dedos e um bom tempo tentando vencer os movimentos improváveis da complicada Ilusionistas. Eu quebrava a cabeça tentando encaixar aquilo na descrição que tinha da Terra de Malboro. Só depois de muito esforço em vão é que a ficha caiu. Mais alguns minutos perambulando pela base da Esfinge e, enfim, chegamos ao local correto.
Havíamos perdido boa parte da manhã, e a possibilidade de concluir a via era mínima, principalmente porque ninguém da equipe a conhecia e, coisa terrível, o mais ‘experiente’ ali era eu mesmo. Nos jogamos parece acima, na infame tentativa de ganhar tempo. Devo confessar que não lembro praticamente nada daquela escalada. Acredito que o trauma posterior bloqueou aquelas lembranças. Não sei quantas cordadas escalamos. Creio que não fomos muito além do meio da parede. Talvez 3 ou 4 esticões, nada mais. Sei que foi tudo tranqüilo, sem estresse, mas estávamos lentos demais. A certa altura, com o sol já bem escondido atrás do horizonte, abandonamos a parede. Na base já estava bem escuro e os equipamentos espalhados, ocupando uma grande área, foram organizados na penumbra, à luz de lanternas. Corda para cá, ferragens para lá, casaco, botas, mochila nas costas e pronto.
O próximo passo era encontrar o quinto elemento na estação e descer até o antigo posto do IAP, lá em baixo, na beira do Nhundiaquara, onde tínhamos deixado o carro. O sujeito era um caso à parte. Muito boa gente, mas completamente destoante em relação ao resto da equipe. Nós, esfarrapados e mulambentos, relativamente abobalhados, falando besteira e curtindo o tempo. Ele, impecável, vestindo as mais caras grifes de montanha, engenheiro de respeito, sério, encarando cada passo como um desafio, um preparo físico e psicológico para alguma excursão ainda maior, nos Andes ou na Europa, sei lá. Chegamos na estação bem depois do horário programado, e ele já não parecia muito feliz. Descemos a estradinha estafados e, como todo bom montanhista pé-de-chinelo sabe, o cansaço é o pai do besteirol. O quinto elemento nos acompanhou calado, possivelmente pensando que tipo de gente chinfrim éramos. Com o passar do tempo, e dos metros, a bobajada foi lentamente sendo superada pela lombeira. Aos poucos o silêncio venceu o riso e o cansaço tomou definitivamente seu lugar, fazendo pesar os olhos, o corpo, a boca e a cabeça. O fim desse processo é um estranho sentimento de tristeza. Aquela mesma tristeza que dá depois de uma grande feijoada, quando o silêncio toma conta da mesa e já não se tem ânimo nem mais para sair do lugar; quando esticamos as pernas e deixamos o corpo escorregar na cadeira, olhando para algum ponto no infinito, na expectativa de que o estômago consiga de alguma forma mágica acomodar tudo aquilo que engolimos. Ao menos nesse instante o quinto homem deve ter se sentido em paz.
Chegamos ao carro, arrastando as botas, depois das 10 da noite. Todos felizes, com o sorriso bobo de quem está chegando ao fim de um sofrimento. Alguns metros antes já me bateu o susto costumeiro – onde é que deixei a chave? - As mãos correram apressadas entre os bolsos enquanto a consciência já mandava mensagens de paz – está no bolso do anorak, lembra? – É mesmo. Como poderia ter esquecido. Ainda antes da primeira tentativa na Ilusionistas eu havia acondicionado as chaves no bolso da jaqueta impermeável e fechado com segurança o zíper. Lancei a mochila no chão, ao lado do fusca, absolutamente seguro de mim, com um sorriso de vencedor, de quem passou a perna na própria cabeça oca. Abri confiante a mochila e enfiei a mão lá dentro à busca do anorak. Deslizei o braço de um lado para o outro, cavocando no meio daquela confusão, quando uma leve sensação de pavor tomou meu coração. Comecei a esvaziar rapidamente a mochila, espalhando tudo pelo chão, enquanto todos me rodeavam, olhares fixos em mim. Os sorrisos da chegada congelaram, desconfiados. Esperavam, ansiosos, o momento em que revelaria estar brincando. Depois de espalhar tudo no chão e conferir cada canto da mochila umas três vezes, fui tomado por imenso desespero. Creio que o semblante transmitiu a mensagem claramente. Os olhos arregalados de todos cruzaram-se em silêncio. Depois de alguns minutos de angustiante luto, conseguimos, sei lá porque cargas d´água, achar graça naquilo. Obviamente não o quinto homem. Ele parecia ter entrado em alguma espécie de transe raivoso. Não exprimiu um único som, mas seus olhos berravam infâmias de condenação.
Conseguimos contato pelo rádio com alguns companheiros que estavam no pé do morro e solicitamos o resgate do anorak que havia ficado em algum canto da base da via, possivelmente encoberto pelas sombras. Eles, graças à Deus, dispuseram-se a iniciar as buscas no dia seguinte. Caminhei ainda uma meia hora até o primeiro orelhão já perto da ponte do rio. Pedi então resgate para nossa equipe, a partir de Curitiba. Me irmão, e meu herói, chegou lá umas 2 horas depois, levando a chave reserva do carro.
Dali para frente deu tudo certo. Recebi de volta o anorak e a chave realmente estava naquele bolso. Mas nunca mais vi o quinto elemento.
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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre
4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
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