30 de maio de 2008

27 de maio de 2008

O menino de asas

Incríveis histórias medíocres de montanha - a série
(reedição de postagem antiga)

2.
Saímos cedo em direção à serra. Na moto ia o piloto com uma mochila de ataque na frente e eu, o carona, com uma cargueira abarrotada nas costas. Além de todo o equipamento de escalada, levávamos conosco dois parapentes e a ansiedade de poder subir uma montanha, alcançar o cume por uma parede de granito e descer lançando o corpo no abismo, contrariando a intolerante gravidade, voando feito um urubú. O parapente não pesa muito mas ocupa um volume desgraçado. O excesso de bagagens tornava difícil a condução da moto. Em cada curva fechada a buzina era acionada involuntariamente. Mas chegamos na base da montanha à salvo. O peso foi distribuído da melhor forma possível nas duas mochilas e iniciamos a caminhada até a parede escolhida.

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Lembro claramente a primeira vez que estivemos lá. Não conhecíamos nada sobre trilhas, montanhas, escaladas, vôos, serras e coisas afins. Havíamos feito um rapel aqui e ali, em barrancos e pedreiras, e imaginávamos como seria subir uma montanha de verdade. A única informação que tínhamos era onde pegar o ônibus e onde descer. A caminhada, dali pra frente, seria repleta do mais profundo mistério.

O tempo estava fechado e a densa neblina havia nos roubado toda a serra. Tudo que se via a partir de uns 20 metros à frente do nariz, era um lençol cinza e úmido do tamanho do mundo. Tomamos o cuidado de seguir, a uma distância segura, um grupo com mochilas e roupas de gente que parecia saber o que estava fazendo. Eles certamente tinham o mesmo destino que nós. Bastaria segui-los, mas os miseráveis andavam rápido demais e perdemos contato antes mesmo da primeira bica d´água. De qualquer forma, depois de muito sofrimento, sabe-se lá como, alcançamos o afamado cume.

Não vimos nada no trajeto todo. Nem uma minúscula e rápida janela se abriu. O lençol cinza permaneceu inclemente ao nosso redor e a umidade deixou-nos molhados e gelados. Mesmo assim, de forma absolutamente inexplicável, amamos aquele lugar. O cheiro, o vento, o frio, o cansaço, as pedras, paredes e mato. Todos os detalhes de tudo que conseguimos ver e tocar nos cativou para sempre. Voltamos lá mais de uma centena de vezes. E em muitas outras montanhas, vales e serras por aí.

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Espalhamos toda parafernália na base da parede - cadeirinhas, corda, costuras, paradas, freios e tudo mais. O clipe dos mosquetões rompia o silêncio enquanto a umidade da respiração condensava a cada expirar. A rocha lançava-se espetacularmente em direção ao céu. Avançamos lenta e delicadamente pela parede. O som das ferragens balançando, penduradas ao corpo sustentado apenas pela ponta dos dedos, e a brisa suave vinda do mais distante horizonte, tornavam o ambiente indescritivelmente assombroso. Nesses lugares, os sentimentos podem saltar em um segundo do mais puro êxtase ao mais angustiante horror. Levamos bem mais tempo do que o planejado para alcançar as rampas de pedra que dão acesso ao cume, por conta do volume de coisas que trazíamos.

Lá no alto, novamente apoiados em chão de verdade, começa mais uma vez o complexo ritual de manuseio dos equipamentos. Cordas e ferros deram lugar a uma ampla vela de nylon que haveria de nos servir de asa dentro de poucos minutos. O vento batia de frente no rosto, e o campo onde pousariamos estava trezentos metros abaixo de nós e talvez cerca de 2km à frente.

Passamos ainda alguns minutos contemplando a paisagem e ouvindo o vento enquanto saboreamos um pãozinho com queijo e algumas frutas. De onde estávamos, podiamos observar serras, cidades, rodovias, represas e a curvatura da terra na linha do horizonte.

Bastou um puxão firme nos tirantes que nos prendiam à vela. O próprio vento se incumbiu de inflar o tecido e trazê-lo sobre nossas cabeças. Três ou quatro passos à frente na direção do abismo que acabáramos de escalar foram suficientes. Nossos pés foram arrancados do chão e fomos conduzidos aos céus. As linhas cortavam o vento que assobiava seco e agudo. Os urubus passavam ao lado observando curiosos. A trilha, o mato e a moto tornaram-se grãos de areia. Todos pesando toneladas. Todos com raízes profundas. Correntes e bolas de ferro os prendem ao solo. Mas não nós. Não naquele dia. Não naquele instante. Rompemos os grilhões, as cadeias. No tornamos leves como pluma e, inacreditavelmente, ganhamos asas.

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Texto originalmente publicado no site A Montanha, do Vinícius.

Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas

23 de maio de 2008

Marcha fúnebre

Ontem aconteceu, mais uma vez, o lamentável show de horrores gospel nas ruas de São Paulo. Ano passado encontrei um texto certeiro ao falar sobre essa baboseira com propósitos pra lá de duvidosos. Salvei nos meus rascunhos e por pouco não esqueço de publicá-lo.
[...] Ah hienas pérfidas! Hienas travestidas de reis da selva. Enganam multidões com seus doces embustes, com sua voz que impõe respeito, com sua juba falaz que simula sabedoria. Hienas asquerosas que jogam milhões de ovelhas nas ruas, impondo uma marcha por um Jesus-ídolo.

Marcharemos para Jesus quando marcharmos pelos nossos irmãozinhos que perecem nos cárceres fétidos da dita civilização. Marcharemos para Jesus quando marcharmos pelas criancinhas que vendem sua infância doce nos sinais de trânsito por uma moedinha de cinqüenta centavos. Marcharemos para Jesus quando deixarmos de marchar para gastar mais tempo servindo com amor todas as ovelhinhas que são pisoteadas pelo rebanho, avançando sedento rumo ao manancial ilusório.

Marcharemos para Jesus, mas antes precisamos deixar o rebanho. [...]
Do excelente (e abandonado) Blog do Allysson Amorim.

19 de maio de 2008

A neurose do crescimento [1]

Inchaço.

Quando se fala em crescimento de igreja, automaticamente pensamos no aumento da membresia de uma instituição religiosa, o que fatalmente nos leva à ampliação e/ou reformulação física das estruturas. Igreja de sucesso é aquela com várias centenas (senão milhares) de membros, todos ativos, trabalhando para manter funcionando a grande estrutura de cimento e tijolos, sempre com novos eventos, inovações de entretenimento religioso que mantenham os membros ocupados, satisfeitos, orgulhosos até, de pertencer a um empreendimento de tão visível sucesso. Tanto que um dos fenômenos mais repetidos em toda 'igreja' que cresce nesses termos, é migração de rebanhos. Crentes de toda cidade abandonam suas ‘igrejas’ de origem a fim de participarem do empreendimento de êxito. O que rege o crescimento é a lógica de mercado, o culto à performance, a devoção ao status de pertencer a algo grandioso.


A igreja se vende como o instrumento de Deus, como o agente de implantação do Reino de Deus na terra. O Reino de Deus, no entanto, é sinalizado não pela igreja, mas apesar dela. Cristo afinal, chamou-nos para o mundo e não para a igreja. Citou a “ecclesia” um par de vezes, de passagem, sem dar a ela ênfase alguma. Mas nós a transformamos no único veículo avalisado para portar a mensagem sagrada do Evangelho. Cremos que nossa agenda eclesial é a própria encarnação do Reino. Cremos que quando temos nossos templos cheios de gente louvando, dizimando, se abraçando e organizando eventos evangelísticos, estamos implantando o Reino anunciado. No entanto, como diz João Alexandre:

...enquanto se canta e se dança de olhos fechados,
tem gente morrendo de fome por todos os lados...
[veja o clipe no youtube]
Evidentemente toda a igreja que se leva a sério trabalha de alguma forma o lado social, humano, físico, palpável. Mas nosso modelo de funcionamento e de crescimento é quase completamente voltado para manutenção e, se tudo der certo, ampliação das estruturas que consomem quase que a totalidade das entradas em nossas igrejas. A migalha que sobra, depois de tudo pago, vai para algum fim realmente proveitoso.



Enquanto isso, fora dos muros da religião, cristãos piedosos trabalham onde deveriam trabalhar - no mundo ao seu redor. Crentes que entenderam o chamado de Jesus dedicam suas vidas ao próximo com altruísmo, influenciando os que o cercam não pela sua agenda religiosa nem pela sua abstinência do mal (com suas variáveis aparências, dependendo da tendência denominacional do cristão), mas pela sua dedicação ao ser humano, ao próximo, ao aflito. Pela sua disponibilidade. Pela sua abnegação.


A igreja do novo testamento não se agrupava em grandes templos, não erguia para si catedrais, não lotava estádios. Ela se expandia, corria o mundo, de casa em casa. Não sugava o tempo dos cristãos retirando-os por completo da sociedade, isolando-os, alienando-os em suas pregações segregacionistas que dividem a realidade humana entre o sagrado e o profano. Os cristãos do novo testamento viviam no meio do povo e por isso contagiavam o povo.


[continua]

12 de maio de 2008

Incríveis histórias medíocres de montanha - a série

APRESENTAÇÃO


Temos uma queda pelo grandioso. Sonhamos alto, buscamos a glória. Nossos heróis são gente de feitos homéricos (ainda que nem saibamos quem foi Homero). Ansiamos por alcançar os grandes cumes, subjugar as grandes paredes, estraçalhar as altas graduações, galgar as mais assustadoras travessias, transpor as gretas mais profundas.

Mas a dura realidade é que a imensa maioria de nós jamais fez nem fará nada de extraordinário. Gastamos nossos finais de semana e nosso dinheiro em aventuras medíocres. Vemos filmes, clipes e documentários, lemos livros, revistas e blogues, ouvimos e (a glória) damos palestras, sempre sedentos pelas grandes aventuras que jamais teremos.

Essa “tag” é dedicada à todos aqueles que, como eu, sonham em voar alto, mal tiram os pés do chão, mas sentem-se realizados. Sim! Conseguimos enxergar, ainda que com certa dor de cotovelo, a beleza do medíocre. Existe aventura e emoção intensa no ordinário. Aqui mesmo, nos barrancos do quintal da minha casa, senti os mesmo horrores e a mesma glória que Messner, Gulich, Tartari e Niclevicz. Alguém precisa saber disso.

As postagens que darão continuidade a essa série narram as mais inacreditáveis aventuras que um zero à esquerda foi capaz de enfrentar. Todas elas baseadas em fatos reais, possivelmente alterados pela ação do tempo.


Acompanhe:

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação

PS: As postagens desta série serão esporádicas de forma que, se alguma pobre alma quiser acompanhar os textos, precisará visitar esse maldito blog de vez em quando. Há também a opção de assinar a RSS do blog e acompanhar todas as postagens. Se quer fazer isso, mas não sabe como, procure no Google. Ele tem absolutamente todas as respostas.

5 de maio de 2008

A palavra

A palavra
bem pensada
sussurrada
no discurso

Tudo cala
tudo encerra
tudo serra
tudo corta

Corta asa
corta o bico
corta o rico
corta o pobre

A palavra
sussurrada
bem pensada
é meu recurso