Ela já tinha 20 anos quando eu nasci. Arquitetura modernista, com vários níveis, rampas e um imenso vão livre na sala de jantar. E vaga para um carro só, que ninguém imaginava um dia haver tanto carro no mundo, muito menos uma mesma família ter mais que um.
Atrás do casarão um quintal, atrás do quintal a casinha da Ica e da Aci, depois da casinha o barracão e depois do barracão a casinha que foi de todos, onde nasceram meus irmãos e eu, e alguns primos e onde morou meu pai, minha tia, meu tio, minha irmã quando casou, eu quando casei; e o Haro, e o Tiola e sei lá mais quem.
Ali eu cresci. Ali passei meus sábados. Ali dormi nas noites de quinta-feira e comi pastel e macarrão e frango assado e nhoque. Ali eu fui bombeiro e dono de posto de gasolina, abastecendo bicicletas e o tratorzinho com a mangueira do jardim. Ali eu convivi intensamente com meus avós e minhas tias avós solteironas. Joguei xadrês, xadrês chinês (que chamávamos de algo parecido com xincainxek - e eu não faço idéia como se escreve) , três reis, Sete Belo, apostando balas, e ganhei e perdi. Ali devo ter passado uns 30 natais - e como eram ótimos os natais - e um número enrome de aniversários. Joguei bastquete, vôlei, tênis, e fui campeão olímpico de todas as modalidades, e inventei jogos idiotas como o famigerado "isoporobol". E brinquei de esconde-esconde, de alerta, de boca-de-leão.
Ali nasceram meus filhos e alguns sobrinhos. Ali meus avós e minhas tias morreram. Ali meus filhos encontravam os primos e eu encontrava meus pais e irmãos, e tudo acontecia de novo como há 50 anos.
Mas não mais. Não por muito tempo. Agora a casa se vai, como se foi o seu Arthur, que a construiu. Desmorona o último ícone, rompe o dique, derramam-se as lembranças e inundam minha alma, e escorrem pelos olhos, e são boas e lindas e doces e azuis.
Caiu a casa. Se foi. Um novo ciclo começa. Onde é que vou passar o próximo Natal?
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Catedral
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ResponderExcluirDona Sra. Urtigão disse...
ResponderExcluirDizem por aí que renovação faz bem. Desapego tambem. Eu pessoalmente não sei se creio nisso. Mas o seu texto está esplêndido, apesar de ter me deixado um pouquinho mais triste ainda ! E quando isso acontece, penso: não é confessional, é ficção e tento me enganar e tudo fica melhor.
ps o comentario "postou-se" sòzinho antes da revisão, então, desculpe-me, apaguei e postei devidamente corrigido.
Um abraço !
E quem sabe será o melhor natal, o próximo.
Eu até creio na renovação e desapego. Mas dói. Um pouco menos, se for ficção.
ResponderExcluirQuando uma casa assim cai, todas caem com ela, como num prenuncio de que, um dia, não ficará pedra sobre pedra.
ResponderExcluirEsta semana estive em Curitiba ,fui lá na casa me despedir,achei bificil pensar é ultima vez que entro aqui.como vc. as lembranças sáo muitas e, como não tenho com de escrever nem me atrevo aconta-las .Mas foi muito lrgal ler oque vc. escreveu e como sempre que leio me emociono . beijos tia Stela
ResponderExcluirEu escrevi esse negócio entre lágrimas, tia. Foi pro beleléu a casa do vô.
ResponderExcluirBuenas, limãozinho!
ResponderExcluirHoje me deu nas idéias de visitar o seu blog e, uma vez aqui, cliquei em família e fui lendo. Nesse artigo sobre a casa do vô você fala do "xincainxek" que não sabe como escrever.
Coisa mais besta que com tantas lembranças evocadas pelos seus textos o que não me sai da cabeça é o tal do Chiang Kai-shek. Acho que é assim que se escreve - foi o que deu no Google - o nome do tal general chines que, imagino, deu nome ao jogo.
Voltei para diminuir sua ignorância (e a minha) com o resultado da breve pesquisa.
Com tanta coisa melhor pra conversar...
Ô coisa mais besta!