14 de julho de 2008

Sopão

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

6.

A chuva, apesar da terrível decepção e sofrimento potencial que trás a qualquer caminhante, é também, potencialmente, uma grande aliada à um contador de histórias. A maioria dos casos que ficam gravados na memória de um excursionista e, consequentemente, transformam-se em causos dignos de serem contados em rodas de amigos, seja em um boteco, ponto de ônibus, barraca ou cume de montanha, envolvem os desprazeres causados por essa dádiva de Deus, despejada graciosamente sobre justos e injustos.

Em uma de minhas primeiras visitas ao Pico Paraná, ponto culminante da impressionante Serra do Ibitiraquire, permitimos que um grupo inexperiente de aventureiros de sessão da tarde nos usasse como guias e tirasse proveito do nosso cavalheirismo, nobreza, boa-vontade e conhecimento em andanças montanhesas.

A coisa toda foi bizarra.

Começou na estrada de terra. Nós à pé, e os convidados de carro. Carona? Nem pensar. Iria sujar os tapetes do carrão. Como os motoristas não sabiam o caminho, nos acompanharam em todo trajeto. Patético.

No início da trilha, mais uma novela. As mocinhas que vieram ‘conhecer a natureza’, tinham trazido seus pertences espalhados no porta-malas, porque não cabiam em suas bolsinhas minúsculas. Mas isso não era problema. Nós, os experientes e educados pseudo-guias, estávamos equipados com modernas mochilas telescópicas. Confabulamos sobre o número de pessoas e as barracas necessárias, na esperança de poder abandonar algum peso e volume no carro, mas concluímos que seria imprudente. Nossos acompanhantes abelhudos, no entanto, ouviram a conversa e tiraram suas próprias conclusões. Sorrateiramente livraram-se de sua própria barraca, certos de que pessoas tão bondosas como nós cederiam um local seco e seguro para eles. Com um certo esforço coube tudo em nossas costas e iniciamos a caminhada.

O céu estava nublado, cinza chumbo, pesado, prometendo um dia daqueles. Tocamos montanha acima carregando peso para burro, enquanto os visitantes reclamavam da lama, da garoa, do cansaço, do mato, dos mosquitos, da fome, da sede e tudo mais que se possa imaginar. Chegamos ao campo 2 sem visibilidade alguma no horizonte. A garoa engrossou e armamos nossas barracas rapidamente. Ao final da labuta, percebemos que nossos acompanhantes permaneciam imóveis. Soubemos, naquele instante, de sua elegante decisão de deixar a barraca no carro para aliviar o peso, enquanto nós carregávamos suas tranqueiras. Graciosamente, como era de se esperar, cedemos uma de nossas barracas aos folgados e nos apertamos nas que sobraram.

Foi nessa noite, com outros quatro infelizes amontoados em uma barraca de três lugares, que tive meu primeiro contato com um tipo de impermeabilização muitíssimo interessante. A água entrava na barraca sem a menor cerimônia, mas, uma vez lá dentro, não conseguia mais sair. Nossas mochilas tornaram-se ilhas onde cada náufrago permanecia acocorado, tentando manter-se seco. Para aquecer o corpo gelado, arrumamos uma ilhazinha para o fogareiro e colocamos o miojão na panela, na esperança de que, engolindo algo quente, o frio terrível que nos doía nos ossos desse uma trégua. Mas como desgraça pouca é bobagem, minha ilha cedeu, jogando-me na água empoçada. O corpo reagiu de imediato, num movimento descontrolado, atingindo em cheio a panela e o fogareiro. O miojo quentinho virou um sopão gelado, diluído por toda a água da barraca. O jantar foi uma espécie de pescaria nojenta. O macarrão, catado com a mão naquela água gelada e suja, era despejado na boca como uma gosma pegajosa, lembrando aquelas cenas clichês de filme de terror, e descia gelado pela garganta.

A situação tornou-se inaceitável. Saímos todos daquela barraca miserável, implorando por vagas na vizinhança. Graças ao bom Deus meu irmão estava por ali com sua esposa e me cedeu um cantinho apertado, mas seco, em sua barraca minúscula. Os visitantes, tranquilamente acomodados em uma barraca emprestada, que nós carregamos e montamos, barraram os outros dois náufragos. Acharam desagradável demais permitir a entrada daquela gentalha molhada e suja naquela barraca sequinha.

Eu consegui dormir seco. Meus companheiros, sentados em suas ilhas, passaram a noite literalmente ensopados.

_____

Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão

3 comentários:

  1. Bem feito!!!
    Quem mandou ajudar os outros?
    Não sabe o sábio ditado que diz: "Ema, ema, ema. Cada um com seus pobrema"???
    Danou-se...

    ResponderExcluir
  2. infelismente não conhecia o excelente ditado. Mas vou transformá-lo na minha bandeira de hoje em diante.
    :-)

    ResponderExcluir
  3. Veja o lado bom, mano. Certamente o galardão que nos espera na eternidade ganhou uns quilos a mais por conta dessa.

    Não fazer aqueles dois cidadãos descerem rolando a montanha foi mesmo uma atitude nobre e admirável.

    ResponderExcluir