4 de agosto de 2008

Do piso ao teto

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

8.

Era um projeto ousado. Poucos percorreram toda aquela parede de uma só vez. Se quiséssemos ter a esperança de concluir todo trajeto em um dia, teríamos que correr. Saímos de Curitiba às 5 horas da manhã, abandonamos o carro no pé da serra e percorremos, apressados, o longo trecho que nos levaria à base do impressionante contraforte.

Era um daqueles dias perfeitos de inverno. O céu descortinava, à medida que os vapores da noite subiam e sumiam engolidos pelo sol, um degradê de azuis impossíveis, e a brisa gelada prometia um dia perfeito.

Às 7 horas estávamos na base da parede, preparando-nos para um longo e intenso dia vertical, alternando rocha e mato numa correria para chegar ao cume antes do anoitecer. As primeiras cordadas foram feitas em tempo recorde. Aproveitamos a parte já conhecida da rocha para adiantar o cronograma. Para fazer a parede inteira, do piso ao teto, emendaríamos cinco vias diferentes. Essas emendas eram os trechos mais delicados, desprovidos de qualquer possibilidade de proteção. Além disso, a rocha era bastante suja nessas partes, com cristais soltos, terra, musgos e água escorrendo. Algumas costuras eram feitas em instáveis tufos de taquaras e em certos trechos os esticões eram apavorantes. Tecnicamente não havia nada que qualquer guri com um mês de academia não pudesse facilmente deixar para trás. Mas os nervos floresciam ao sol, encharcados pelo suor tenso e compenetrado. No manejo da corda em uma das paradas, um freio oito decidiu percorrer sozinho o caminho de volta, parede abaixo.

Chegamos ao grande platô, onde ficam as vias mais freqüentadas daquela famosa montanha, no meio da tarde, completamente exaustos. Já tínhamos suportado 8 horas de parede, com breves intervalos para algumas barras de cereais, água e chocolate. Isso sem contar uma hora de caminhada e uma hora de carro desde Curitiba. A alvorada, ainda no conforto da minha casa, tinha sido às 4 horas da manhã.

No grande platô fizemos um lanche mais reforçado, preparamos e bebemos suco instantâneo e nos permitimos alguns minutos de descanso, principalmente aos pés, oprimidos e castigados pelos apertadíssimos calçados próprios para escalada em rocha. Dali para frente seria somente pedra, granito puro, vertical, até o cume daquela montanha.

Se arrependimento matasse, teria caído morto no dia seguinte. Pois não aconteceu que, num momento da mais absurda estupidez, 50 metros acima do platô, a míseros 200 metros do objetivo final, fui tomado por uma mistura de desânimo infantil e medo maricas? De forma absolutamente irracional, tomei, naquele instante, sem pestanejar, a decisão mais infame da minha carreira montanhística. Abortei a missão. Meu companheiro, cabra macho de verdade e um tanto quanto obcecado, conseguiu a adesão de um amigo que havíamos encontrado por acaso no platô, e tocou o projeto até o final. Nos encontramos 3 horas depois, na trilha, por volta das 8 da noite e tocamos morro abaixo à luz das lanternas.

Os momentos mais perigosos que passamos naquele dia, porém, muito mais terríveis que as costuras em taquaras minúsculas, com 10, 15 metros entre uma e outra, ou os trechos escalando à francesa, foi o inconseqüente retorno na estrada até Curitiba. Acordados desde as 4 da madrugada e depois de quase 12 horas na parede e pelo menos umas 4 horas na trilha, pegar a estrada foi uma temeridade. Com dezenas de cochilos periódicos, interrompidos pelos solavancos do carro no acostamento, chegamos em casa um pouco depois das 11 da noite. Ao que me consta, baseado em dados não oficiais, o que mais mata escaladores, estatisticamente, são as viagens de carro. Os mais notáveis nomes internacionais e pessoas queridas e bem próximas de nós são contabilizados nesses números funestos.

Depois de um dia desses o lar é o paraíso na terra. O chuveiro e a cama berravam meu nome, a cama muito mais alto mas, pelo bem do casamento, ouvi primeiro os apelos do chuveiro.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto

Um comentário:

  1. Meu,
    Não interessa se foi por medo, paúra, mariquice, cansaço, ou algo real e concreto: deu na cabeça de voltar, o melhor é fazê-lo. Ir contra a própria razão/intuição é caminho reto para um desastre.
    E você ganhou uma história + interessante pra contar!!!

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