3. À luz de um abajur
Uma das muitas aplicações da inusitada afirmação de Jesus de que o Reino de Deus é das criancinhas, está na forma como elas lidam com a narrativa. Abra um livro, sob a luz amarela de um abajur, do lado de um menino de 5 anos, no silêncio de seu quarto, entre brinquedos e bonecos, com a sombra da noite e seus ruídos estranhos entrando pelas frestas da veneziana, e comece a ler uma história. O pequenino e frágil menino pode tornar-se herói, gigante, mago, rei ou monstro. Ele se assusta, ri, arregala os olhos, observa calado, agarra seu braço com força ou reclina-se sobre seu peito com o sorriso meigo de um anjo.
Ao libertar-me das letras de chumbo do livro preto, pude iniciar minha jornada à infância. Não é fácil. Não é natural ou intuitivo para quem abandonou há anos a beleza da imaginação e entregou-se ao mundo cinza da objetividade. Mas é uma viagem que vale a pena. É um esforço compensador. Sentir a brisa morna dos montes da palestina ou os ventos terríveis e gelados das tempestades no mar da galiléia. Sentar entorno da fogueira e inalar o cheiro do peixe e o ar denso no momento do confronto entre o mestre e o homem que o negou. Ver em seus olhos a graça e o perdão inesperados. Notar o peso dos ferros nos braços e pernas de Paulo, no canto úmido e fétido de uma prisão romana. E dançar em festas de casamento.
Penetrar na história nos faz entender que as letras são carregadas de emoções, embotadas em suor e lágrimas, embaladas em músicas e danças. Que há no ar tensão, medo, angústia, sarcasmo, dúvida, alegria, receio, esperança, desalento, êxtase, cansaço e renovo. Que os corpos da história se tocam, exalam odores, impregnam-se de pó, abraçam-se, trocam carinhos, afetos, provocações, empurrões, desavenças, olhares de ódio, inveja e perdão.
A narrativa é inconclusa, como é a humanidade. É cheia de variáveis, de caminhos, de circunstâncias, de nuances e possibilidades. Ela liberta a bíblia da clausura das considerações finais e a eleva à altura do fantástico, que extrapola tempo, espaço, cultura, lei, tradição e mito.
A leitura conceitual da bíblia é conclusiva. É a busca pelo ponto final.
A leitura narrativa é incerta. É o encontro com as reticências. Experimente...
Veja também:
RETICÊNCIAS
1. Morte
2. Vida
3. À luz de um abajour
Tuco,
ResponderExcluirgostei muito. venho tentando resgatar isso com minha filha de 3 anos.
Parabéns pelo texto, tino de poeta.
Roger
Ok, sugestão aceita. Vou experimentar...
ResponderExcluirNos esquecemos com assombrosa facilidade que Jesus era um Mestre da oralidade, um exímio contador de histórias. O pouco que escreveu só a ele e ao vento foi dado ler.
ResponderExcluirGutenberg marca a vitória decisiva da escrita sobre a oralidade e, de certa forma, do ponto final sobre as reticências.
"As letras de chumbo do livro preto", se não reavivadas com esse estranhamento infantil a que você se refere, só trarão morte e escravidão. Clemente de Alexandria advertia que escrever um livro era como "colocar uma espada nas mãos de uma criança".
Obrigado por nos alertar sobre a importância das reticências.
Abração.
Alysson Amorim