28 de novembro de 2013

Deus?

Tirinha de Laerte

Tem gente que grita, briga, esperneia, ora, reza, faz promessa, vai no culto, vai na missa, faz campanha, clama, reclama, suplica, se ajoelha, jejua, sacrifica, pega passe, faz mandinga, corrente de oração e não se toca que Deus está do nosso lado, em todos os cantos, e gosta de falar baixinho.

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Não entendeu porque Deus gosta de falar baixinho? Então leia também:
A moita onde Deus se esconde

21 de novembro de 2013

O gondoleiro do amor

Texto de Castro Alves, musicado por Salvador Fábregas, na voz de Stellinha Egg.




O Gondoleiro do Amor - barcarola
Castro Alves

Dama negra
Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar…
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.

E como em noites de Itália
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora
Que o horizonte enrubesceu,
- Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua.

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é – um astro,
no silêncio uma canção,
É brisa – nas calmarias,
É abrigo – no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor…
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.



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Veja muito mais sobre minha tia famosa aqui.

18 de novembro de 2013

Nota de imprensa 2

Jovem é visto brincando com duas crianças no meio da rua, no bairro Água Verde. Moradores do local afirmam que o rapaz é o pai do casal de infantes de cerca 3 e 6 anos. Segundo testemunhas eles alternavam entre jogar bola, andar de bicicleta e subir em árvores.

D.A., 36 anos, morador do local, garante que os três riam o tempo todo e que algumas vezes se abraçavam e rolavam na grama da calçada. A confusão parece ter se estendido durante toda tarde. "Havia uma pipa, mas o vento não ajudou e nem chegou a ser usada", afirma R. J., que observou tudo do balcão da mercearia enquanto trabalhava.

Ainda segundo moradores, a mãe, que era também esposa do jovem suspeito, chegou no fim da tarde de bicicleta, vindo ninguém sabe de onde e trazendo algodão doce para os pequenos. "A última coisa que vimos", afirmou R. J., "foi quando a mãe mandou os irmãos para casa tomar banho e o mais velho correu na frente rindo e gritando - 'eu primeiro".

D. A. ainda afirmou ter visto o casal seguir atrás dos filhos, de mãos dadas, trocando beijinhos estalados.





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Veja também:
Nota de imprensa

13 de novembro de 2013

Algoritmos - Os novos senhores do mundo

A internet (e isso, atualmente, é o mesmo que o Google e o Facebook) é o deus onipresente da sociedade contemporânea. O sujeito que se torna o feliz proprietário de um dispositivo móvel transforma-se, ele mesmo, em um gadget ambulante, tendo sua identidade absorvida pela conexão de uma forma assustadoramente matrixiana. E o faz absolutamente desprovido de medos e reservas, completamente confiante na bondade desse seu novo mestre.

Anunciamos e louvamos e comercializamos a internet como ferramenta libertária à nosso dispor. É o instrumento que derrubará as muralhas que nos separam e ampliará nossos horizontes até um limite jamais conhecido. Seremos todos libertos dos grandes, dos poderosos, dos senhores do mundo, que segregam, separam, excluem, principalmente através da manipulação da informação pelas grandes mídias que detinham, até pouco tempo, esse poder exclusivo e assombroso de informar. Mas não mais. Agora, é o que pensamos, temos acesso à tudo.

Será?

Na sua interessante palestra para o TED, Eli Pariser esclarece de forma bastante superficial e já um tanto assustadora a forma como trocamos os filtros impostos pelas grandes corporações de comunicação por filtros inexplicáveis e incompreensíveis de algoritmos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Algoritmo) robóticos, usados nas ferramentas de pesquisa na internet, sejam elas quais forem. Se você deseja encontrar um livro, digamos, e digita na sua ferramenta de busca favorita o título do mesmo, acionará, no instante em que clicar no 'enter', uma lógica robótica que você mesmo nem imagina existir que fará a seleção automática e instantânea do que você busca. E qual é o motor que alimenta esses algoritmos? Baseado em que ele decide o que você gostaria de ver? Em marketing e vendas. Tão somente e simplesmente isso.

Sim, meus amigos, Google, Facebook e seus pares tem um único interesse e dedicam milhões e milhões no aprimoramento de suas ferramentas de busca para alcançá-lo. Todos os seus movimentos na world wide web são sistematicamente avaliados. Suas buscas, seus cliques, os movimentos de seu mouse ou dedo sobre a tela e monitorado com o único objetivo de gerar receita. Vender. Causar cliques que incrementem o consumo. E para isso, segregam sua busca, filtram, direcionam, ocultam, deflagram, suam bits aos cântaros, incansavelmente, colocando ao seu alcance somente aquilo que tenha potencial para induzi-lo a algum clique rentável.

Os senhores do mundo ainda estão por aí. Ainda seremos manipulados. Somente a forma é que mudou.


Não deixe de assistir a palestra de Eli Pariser No TED. Menos de 10 minutos. 

 

6 de novembro de 2013

A verdade é seda esvoaçante




“A verdade, com suas vestes, acha 
que os fatos são apertados demais. 
Na ficção ela se move mais à vontade”.
Rabindranath Tagore



O que não me canso de dizer, desde o antigo 'reticências', e que o Paulo Brabo disse muito melhor que eu no belíssimo 'a verdade e sua metáfora', está aí resumido pelo indiano Nobel de literatura Radindranath Tagore.

Enquanto as teologias de linha fundamentalista/literalista tentam fazer caber a verdade nas vestes apertadas dos fatos, enquanto se desdobram para emendar todas as pontas soltas, a verdade insiste em vestir-se de narrativas, de metáforas, de parábolas. A verdade é tecido leve de seda e cetim dançando ao vento. Não é possível saber sua forma exata, seu corte preciso, porque não pára, porque dança, porque serpenteia e esvoaça com a mais leve brisa.

As vestes sisudas, abotoadas e engomadas dos fatos só podem conter uma caricatura da verdade. Uma imagem limitada e desconfortável.

Não é à toa que a verdade, depois de ter passado séculos e séculos tentando conformar-se ao papel, teve que encarnar na mais esvoaçante de todas as formas - a de um ser humano. Nem é à toa que seus movimentos foram sempre inesperados, que caminhou errante, que deixou-se levar pelo vento por caminhos inesperados. Não é à toa que não se pôde controlá-la. Nem é à toa que era encantadora e cativante e por onde passava deixava queixos caídos.

Tivesse se vestido de fatos e passado a defendê-los com unhas e dentes em cruzadas apologéticas em favor da família e dos bons costumes, teria gerado um levante de ódio contra o outro e deixado rastro de sangue que não seria o dela, mas das multidões digladiando-se na busca atordoada pela afirmação definitiva da verdade.

Mas assumiu forma mais sutil e desarmou e deixou o odor da vida por onde passou. A não ser entre aqueles que não suportavam suas palavras vagas sobre amor e bondade. A não ser entre os que queriam, a todo custo, a verdade redigida em documento e lavrada em cartório para tê-la sempre em mãos, prontos para julgar e condenar quem não a seguisse à risca.

Não é à toa que ela escondeu-se no peito de um homem.
Não é à toa que esse homem a manteve dentro de si.



“Deixo as minhas pequenas coisas para as pessoas que amei.
As grandes são para todos”.
Rabindranath Tagore


Em tempo: descobri Tagore num post do interessantíssimo blog de literatura HomoLiteratus, do  Vilto Reis.

1 de novembro de 2013

Mensagem à poesia

Para Léo, Gito, Tony, para toda rapaziada do Caminho Nações e todos aqueles
"a quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante"


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De Vinícius de Moraes
Rio de Janeiro , 1954



Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas,
E há legiões delas carpindo a saudade de seus homens;

Contem-lhe que há um vácuo nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema;

Contem-lhe que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares,
E é preciso reconquistar a vida.
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado — não a magoem... — que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes,
Que meus ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem deixar intimidar,
Que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora;
Digam-lhe, no entanto que sofro muito,
Mas não posso mostrar meu sofrimento aos homens perplexos;
Digam-lhe que me foi dada a terrível participação,
E que possivelmente deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.

Se ela não compreender, oh! procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu;
Mas digam-lhe que, no fundo, tudo o que estou dando é dela,
E que me dói ter de despojá-la assim, neste poema;
Que por outro lado não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado há fome e mentira;
E um pranto de criança sozinha numa estrada junto a um cadáver de mãe;

Digam-lhe que há um náufrago no meio do oceano,
Um tirano no poder, um homem arrependido;
Digam-lhe que há uma casa vazia com um relógio batendo horas;

Digam-lhe que há um grande aumento de abismos na terra,

Há súplicas, há vociferações, há fantasmas que me visitam de noite
e que me cumpre receber,
Contem a ela da minha certeza no amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre;
Por isso, peçam-lhe que tenha paciência,
Que não me chame agora com a sua voz de sombra;
Que não me faça sentir covarde de ter de abandoná-la neste instante

Em sua imensurável solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí.
Em meu coração vive a sua imagem pertencida,
E nada direi que possa envergonhá-la.
A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim.
Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz.
Minha paixão de homem resta comigo;
Minha solidão resta comigo;
Minha loucura resta comigo.
Talvez eu deva morrer sem vê-la mais,
Sem sentir mais o gosto de suas lágrimas,
Olhá-la correr livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia.
Digam-lhe que é esse o meu martírio;

Que às vezes pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade
E as poderosas forças da tragédia abastecem-se sobre mim,
E me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação estática
Num amor cheio de renúncia.
Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.