21 de julho de 2008

Cadê o caroço

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

7.

O suprassumo da escalada na época, pelo menos para um piazito como eu, era ter a coragem de enfrentar as enormes, imponentes, assustadoras, desafiadoras, terríveis e temerosas paredes de granito do Marumbi. Já tinha escalado uma e outra viazinha no Lineu e no Paredão Preto, mas chegava a sonhar com as paredes realmente comprometedoras do local. Pescando as informações secretas que vazavam abafadas dos montanhistas de verdade, chegamos ao nome daquele que haveria de ser nosso primeiro grande desafio naquele conjunto de montanhas. O Caroço da Esfinge.

Fomos agraciados com um belíssimo croqui, feito de cabeça num naco de papel arrancado às pressas de algum lugar, pelo próprio autor da via (um deles).

Os preparativos para a nobre empreitada assemelhavam-se à um complexo ritual religioso de iniciação. Tudo organizado e planejado com o respeito de alguém prestes a pisar em solo santo.

O roteiro era simples. Acordar de madrugada, pegar o trem, descer na estação do Marumbi, seguir pela Noroeste montanha acima, até o local chamado ‘praça XV’, que deveria ser intuído no meio daquele matagal, um pouco antes da primeira janela. Na praça, a Noroeste ficaria para trás e desceríamos a encosta até cruzar um rio seco no fundo do vale e, voilá, a base do Caroço. Segundo o croqui, os primeiros grampos estariam bem acima na parede e teríamos que iniciar a escalada às cegas, seguindo por uma pequena fissura na rocha.

Foi exatamente o que fizemos. Depois de cumprir à risca todo trajeto, localizamos a fissura na base da parede. Segui por ela, na ponta da corda, por uns 20 metros e nada de grampo ou da bendita corrente que teria de estar por ali. Armei uma parada improvisada em um pequeno platô, utilizando um arbusto relativamente firme. Acocorado no platô minúsculo, seguia meu ritual mecânico e silencioso de esticar a corda para meu companheiro quando avistei um ponto negro minúsculo contrastando com o azul profundo do céu, surgindo por trás do Abrolhos, cruzando a Ponta do Tigre e lançando-se vertiginosamente pelo vale, observando tudo ao seu redor. A penugem parda e escura destacava o bico quase dourado, com a ponta curvada afiada como uma navalha. Naquele momento, tinha-se a nítida impressão de que absolutamente nada lhe escapava da visão. As pontas das asas e do rabo tremiam pelo movimento do vento enquanto a águia cortava o ar sem piedade. A certa altura, inclinou seu corpo para cima, mudando suavemente o plano de vôo, desenhando uma onda no céu, subindo levemente e reduzindo a velocidade como um gato que se prepara para o bote fatal. A cabeça e os olhos permaneciam fixos em algum ponto adiante de mim, mas um pouco abaixo. Encolheu as asas reduzindo-as à metade de sua envergadura e lançou-se em um bote definitivo rumo à vítima inocente que lhe serviria de alimento. Quando estava a ponto de cruzar a minha frente - e eu já podia ouvir o grito do vento sendo rasgado - desenhou, dessa vez muito mais abruptamente, uma nova onda no ar, batendo as asas abobalhadamente como o albatroz de Bernardo e Bianca. Foi nesse instante, quase parada no ar, que a ave virou a cabeça na minha direção, abriu as asas recuperando a compostura e, inclinando o corpo, planou suavemente até o platô onde eu estava. Pousou 2 metros ao lado, sem tirar os olhos de mim. Observou curiosamente cada suave puxada na corda, analisou os movimentos, a roupa e o equipamento. Nossos olhares se cruzaram algumas vezes naqueles segundos. Ela curiosa, eu maravilhado. Num movimento rápido, acompanhado pelo guincho espetacular das aves de rapina, voltou os olhos para o vale e precipitou-se novamente no vazio, possivelmente imaginando que tipo de figura patética eu era.

Daquele platô ainda tentamos subir mais alguns metros, mas a ausência de proteções começou a deixar a situação delicada demais e decidimos descer dali. Concluímos com muita propriedade que alguém deveria ter mudado a via de lugar e reservamos o restante do dia para conhecer toda a base da Esfinge.

Passamos ainda muitas outras noites sonhando com aquelas paredes.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço

2 comentários:

  1. Certa vez, caminhando só por uma estradinha perdida no interior, fui presenteado por um show de vôo de um gavião que me sobrevoou por vários minutos com acrobacias dignas de um artista.
    Acho que brincam conosco...

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  2. A Esfinge tem enigmáticas aves de rapina no ventre.

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