Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
11.
No princípio criou Deus as montanhas, os vales e as falésias. E neles plantou os pequenos afloramentos rochosos, as paredes colossais, as fendas, fissuras, chaminés e tetos, e as espantosas plantas rupestres endêmicas. E cercou-os com o vôo provocante dos urubus, os mares de nuvens e o efeito alucinante provocado pela refração dos raios de sol na densa neblina que envolve os corpos dos montanhistas solitários, cercando-os de uma aura multicolorida, em eventos tão físicos quanto espirituais. E criou também os mocós, as tempestades, as nuvens galopantes abraçando carinhosamente o contorno do relevo, o vento gelado, os platôs improváveis e abençoados, as agarras exatas nos lugares exatos e aquele pequeno arbusto impossível, isolado em centenas de metros de rocha vertical, agarrado à parede com milhares de raízes, como fios de cabelo, presas em saliências minúsculas. E viu Deus que isso era bom. Ah, e como era bom.
Depois fez o homem e a mulher, e colocou-os em um jardim, no vale entre dois grandes rios, mas os fez olhar para os montes e disse-lhes: “Andem por todos os vales e bebam de todos os rios, mas saibam que somente no cume desses montes encontrarão a parte que lhes falta. Pois quando os fiz, retirei parte de vocês, e plantei em algum ponto de alguma dessas montanhas.” E foi nesse dia que nasceu no homem o desejo de conhecer todos os cumes e faces e paredes de todas as montanhas. Jamais, em qualquer das aventuras, travessias e escaladas que o homem empreendeu desde sua criação, pretendeu ele algo mais do que encontrar-se a si mesmo.
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Eu abri os olhos para esse desejo latente quando observava, em uma pedreira abandonada, alguns cabeludos com calças de lycra ridículas, presos à cordas coloridas, pendurados pela ponta das mãos e dos pés, movendo-se com precisão felina pelas paredes de granito cinza. Depois daquele dia, uma sucessão de fatos coincidentes conduziram-me definitivamente à prática desse esporte não-esporte.
Naqueles tempos remotos, não tínhamos acesso a informação alguma. Equipamentos custavam tanto quanto nosso próprio fígado. Não sabíamos nada sobre cursos e não havia internet, nem google (santo Deus, como sobrevivíamos?). As informações estavam devidamente escondidas em locais secretos e inacessíveis. Cavocávamos onde podíamos para encontrar algo que nos conduzisse com segurança, nos tortuosos e confusos caminhos que trilhávamos, mas dependíamos muito mais da nossa imaginação. Em muitos casos, nossas criações eram absolutamente absurdas. Vou lhes contar, em segredo, algumas delas.
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Nossa primeira escalada foi na mesma pedreira onde encontramos aqueles alienígenas cabeludos. Amarramos a corda, em cima do bloco rochoso, em vários pontos de concreto que estavam abandonados por lá. Tínhamos adquirido, à muito custo, um único mosquetão mimado por todos, e uma única cadeirinha. Amarramos uma vítima na ponta da corda, que passava pelo mosquetão, lá em cima, e descia até a tampa de um bueiro. Passava por lá e seguia até nosso grupo. Amarramos a corda na cintura do mais pesado de nós e o restante segurou firmemente. Enquanto a vítima tentava escalar alguma coisa, a turma agarrada na corda em fila indiana caminhava para mantê-la tensionada. Em várias situações, içávamos a vítima que não conseguia vencer determinados pontos da parede. Feche os olhos e tente imaginar a cena, sem rir, nem chorar.
Depois dessa lamentável experiência, começamos a evoluir rapidamente. Eu e meu parceiro fiel (irmão camarada) compramos um único par de tênis de escalada. Íamos para montanha com nossos três mosquetões e encarávamos as vias que nos pareciam mais fáceis. Tínhamos também um freio oito e um maione feito em casa (que hoje em dia ninguém sabe mais o que é). Um mosquetão ficava com o segurança e o guia escalava com os outros dois. A cada duas costuras, o infeliz tinha que buscar o mosquetão de baixo. Chegando na parada, quando a via era mais difícil, o tênis era lançado para o segundo. Num desses lançamentos, o par caiu dentro de uma fenda estreita, uns dois metros rocha adentro, entalado entre as paredes, à dois metros do chão. Filho único de pai solteiro, aquele par de calçados tinha valor inestimável. Acreditei que seria possível resgatá-lo e entrei de cabeça na fenda. O peito e as costas roçavam na pedra áspera enquanto puxava o meu próprio corpo em direção àquele funil, sem parar para pensar no retorno. E sucedeu conforme o previsível. Alcancei o calçado, mas entalei.
Com o tronco travado firmemente entre as duas paredes de rocha, praticamente perdi a capacidade de dilatar o peito e encher o pulmão de ar. Clamei por socorro com desespero suficiente para fazer meu irmão rapelar com certa urgência para o resgate da sardinha enlatada. Com goles pequenos e rápidos de ar, como a gestante aprende a fazer no curso ‘parto sem medo’, mantive a mente oxigenada enquanto desenvolvíamos em conjunto alguma engenharia capaz de me sacar daquela situação humilhante. Acabei, depois de muito esforço, e sem soltar o par de tênis da mão, conseguindo a liberdade. Apesar da estupidez da situação, minha vida, ali, esteve por um fio.
O próximo passo na nossa vertiginosa ascensão no mundo das escaladas era natural. Encontramos aquela parede virgem cercada por um pântano fétido e ouvimos o clamor da rocha, ansiando ser escalada. Lançamo-nos em detalhada investigação sobre os mistérios da conquista. Clifs, rurps, nuts, estribos e uma série de novos termos passaram a enriquecer nosso vocabulário. Obviamente tínhamos acesso somente às palavras. Para a primeira via que abrimos, tivemos que usar nossa criatividade e inconseqüência. Entortamos algumas chapas de metal e fizemos nossos próprios clifs. Muito bons, por sinal. Compramos brocas com ponta de vídea e uma bela marreta... de 3 kg. Além disso, selecionamos algumas chaves de boca bem robustas da nossa caixa de ferramentas, que usamos como proteção em algumas fissuras. Os primeiros furos foram feitos assim mesmo. Clifs caseiros, chaves de boca, estribos feitos com corda de varal e uma marreta de 3kg batendo diretamente sobre as brocas, sem mandril. Além de terminarmos o dia com o braço latejando pelo peso da marreta, quebramos todas as brocas. Nas semanas seguintes descobrimos que uma marretinha de 300g seria suficiente, e conseguimos um belo mandril emprestado. Com esse arsenal abrimos três vias de 15 a 20 metros onde hoje se encontra um famoso teatro. O pântano virou um lago repleto de peixes e patos, e tem até uma cachoeirinha. Mas o acesso às vias foi proibido.
O engraçado foi ver, semanas depois da proibição, uma campanha publicitária convidando o Brasil inteiro para fazer turismo em Curitiba. Uma das cenas de destaque era o recém inaugurado teatro, com a bela parede de granito ao fundo. Então a câmera viajava em direção à uma dupla de escaladores na via que abrimos com nosso suor e sangue, mostrando, em um momento mágico, a fusão de cultura, esporte, lazer e meio-ambiente. Politicagem miserável. Propaganda enganosa. Ninguém nunca mais pode escalar ali.
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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre
4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
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ResponderExcluirVocê incita o desejo nunca antes existente em mim "de conhecer todos os cumes e faces e paredes de todas as montanhas."
ResponderExcluirSua Gênesis desperta a parte ecológica latente em minha alma (pobre alma aprisionada num corpo sedentário...).
ResponderExcluirEbeneser
Alysson, as cercanias de BH são um paraíso de cumes. Sugiro uma passada na Serra da Caraça (o google te mostra como chegar lá) antes que o desejo passe.
ResponderExcluirEbeneser, se vc vier pra cá ano que vem, vou lhe mostrar alguns lugares de tirar o fôlego (e de fácil acesso).
Valeu. Abraços.
Ah, mano véio... Sem palavras...
ResponderExcluirNenhuma outra conquista foi tão bacana quanto essas primeiras.