27 de outubro de 2008

Macacos me mordam

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

12.

Estávamos em Vassouras quando o policial nos parou, há 600 quilômetros da partida e 600 do destino. Eu no volante, com minha carteira de motorista em dia, mas os documentos do carro vagando no limbo, em algum ponto entre a origem e o destino. Cem quilômetros antes, quando chegávamos ao Parque Nacional do Itatiaia, nos demos conta de que os documentos ficaram em Curitiba, junto com a carteira do meu irmão, que vinha dirigindo até ali. Desfrutamos de dois belos dias de caminhada no parque, com algumas escaladinhas simples aqui e ali. Antes de pegarmos novamente a estrada, conseguimos pedir, por telefone, que meus pais enviassem pelo correio a carteira e os documentos para Governador Valadares. Dali para frente, assumi o comando do carro. O posto da polícia rodoviária estava sem energia elétrica e o policial nos abordou com uma lanterna na mão.

– Documentos, por favor.

Mostrei-lhe meus documentos e aguardei a reação.

– Documentos do carro.

Nosso roteiro incluía, além do Itatiaia, o morro do Ibituruna, em Governador Valadares – onde assistiríamos o casamento de um primo e voaríamos de parapente – a Serra da Caraça, Serra do Cipó e Serra da Moeda, em Minas, mais a Serra da Bocaina e Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro. Viajávamos no Fiesta ‘mil’ do meu pai. Eu, meu irmão e nossas esposas, além de todo equipamento para camping, escalada e dois parapentes.

– Não estão comigo, senhor policial. Devem, agora, estar viajando pelo correio até Valadares, nosso destino final, à 600 quilômetros daqui.

O homem me chamou para uma conversa particular. Acompanhei-o na escuridão até a guarita na beira da estrada. Apontou-me um placa em um canto escuro, indicando exatamente qual seria o valor da multa que eu teria que pagar, caso não encontrássemos outra solução. Minha consciência teimosa não me permitia ‘molhar’ a mão do ilustre policial. Apelei para a ignorância:

– Desculpe, senhor, mas minha religião não permite nenhuma solução alternativa à lei.

Com um misto de incredulidade, espanto e desdém, o policial me encaminhou até o seu superior, que ouviu a mesma ladainha religiosa. Deu certo.

– Se manda da minha frente, rapaz, antes que eu mude de idéia!

O pacote, no correio de Valadares, estava em nome do meu irmão. Para retirá-lo, ele precisaria apresentar um documento, mas seus documentos estavam justamente dentro daquele pacote. Mais uma novela. No Ibituruna, belo e famoso morro da região, onde pretendíamos voar de parapente, fomos barrados pela fiscalização. Nunca tivemos a documentação exigida pelo extinto Departamento de Aviação Comercial – DAC – que regulamentava e fiscalizava o vôo-livre na época. Fomos sempre voadores clandestinos.

Na serra da Caraça, paisagem de tirar o fôlego. Na serra do Cipó, roubaram nosso fogareiro, mas escalamos um bocado. Na serra da Moeda, um belo vôo. Na serra da Bocaina, um mergulho no mar dos ricos, em Angra dos Reis, e o ataque de um cachorro feroz. O ‘grand finale’ merece uma descrição mais detalhada.

Tínhamos informações superficiais sobre a trilha e a parede, mas o desejo de alcançar o cume era enorme. Um dos integrantes do grupo abandonou a empreitada pouco antes de chegarmos à base da parede, por conta de um fortíssimo desarranjo intestinal. Ao menos teve tempo de presenciar a cena improvável que se descortinou diante de nós.

Eles surgiram não se sabe de onde, movendo-se lentamente, em passadas largas, pelas copas das árvores. Vários filhotes viajavam confortavelmente agarrados às costas de suas mães. Os Monocarvoeiros são os maiores primatas das américas. Vivem em grupos de seis a doze indivíduos e estão ameaçados de extinção. O grupo passou a menos de 10 metros de nossas bocas abertas. O maior deles postou-se de frente para nós, nos encarando nos olhos, enquanto os demais passavam desconfiados mais atrás. Somente quando o último se afastou em segurança é que o líder que nos fitava seguiu lentamente seu caminho, mas sem nos tirar do seu campo de visão desconfiado. Lentamente, sumiram todos entre a vegetação.

Calcula-se que restem entre 200 e 1200 indivíduos desta espécie no planeta.

Nos perdemos na trilha e chegamos à parede não exatamente no ponto que pretendíamos. Encaramos a primeira via que apareceu e, até hoje, não sabemos o nome da maldita. Alcançamos o cume do dedo depois de quatro cordadas fáceis. Erramos também a descida. Nossa corda não chegava na parada e optamos por descer pela via que subimos, apesar das transversais que tiveram que ser desescaladas.

Férias como essas, nunca mais.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam

5 comentários:

  1. Uau! Que aventura!!
    Como assim, nunca mais?!

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  2. Não é que eu não queira, é que agora, com o filhotes e todas as responsabilidades inclusas, ficou complicado. Mas talvez 'nunca mais' seja um exagero mesmo...

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  3. HEhehehehe...
    E você "esqueceu" de contar que em Teresópolis você e a Sandra montaram a barraca em cima de um formigueiro e acordaram no meio da madrugada cobertos de formigas...
    hehehehehehe

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  4. Você e as montanhas já dão extenso material aventureiro. Mas, monocarvoeiros é um exagero!!! Que aventura!
    Nunca mais, não. Sempre que quiser. É só fechar os olhos e lembrar...

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  5. Aproveitou bem meu convite de casamento, he,he,he.

    Certamente o "forte desarranjo intestinal" do membro da equipe foi causado pela deliciosa e pesada comida mineira, na qual é difícil não se exceder.

    Estes desarranjos me acometeram em todas as primeiras 12 ou 15 férias que passei por lá...

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