27 de fevereiro de 2007

O Grande Inquisidor [parte II]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte II]

No meio da turbamulta há agitação, grita-se, chora-se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor. É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta-o com o dedo e ordena aos guardas que o prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam e levam-no. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho. O prisioneiro é conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde o encerram numa estreita cela abobadada. O dia chega ao fim, vem a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está embalsamado do perfume de loureiros e limoeiros. Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Pára no limiar e observa longamente a Santa Face. Por fim, aproxima-se, pousa o facho sobre a mesa e diz-lhe:

— És tu, és tu? — Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vieste estorvar-nos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes disso? Talvez — acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em seu prisioneiro.

***

— Não compreendo bem o que quer isto dizer, Ivã — observou Aliócha, que escutara em silêncio. — É uma fantasia, um erro do ancião, um qüiproquó estranho?

— Admite esta última suposição — disse Ivã, rindo — se o realismo moderno te tornou a este ponto refratário ao sobrenatural. Seja como quiseres. É verdade que o meu inquisidor tem noventa anos e sua idéia pode ter-lhe desde muito tempo transtornado o espírito. Afinal, é talvez um simples delírio, o devaneio de um velho antes de seu fim, com a imaginação esquentada pelo recente auto de fé. Mas, qüiproquó ou fantasia, que nos importa? O que é preciso somente notar é que o inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que calou durante toda a sua carreira.

— E o prisioneiro não diz nada? Contenta-se com olhá-lo?

— Com efeito. Só pode calar-se. O próprio ancião faz-lhe observar que não tem ele o direito de acrescentar uma palavra às suas antigas palavras. É talvez o traço fundamental do catolicismo romano, na minha humilde opinião: "Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo depende pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo menos". Tal é a doutrina deles, dos jesuítas, em todo caso. Encontrei-a nos seus teólogos.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

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