22 de fevereiro de 2007

O Grande Inquisidor [parte I]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte I]

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Quinze séculos decorreram, desde que ele prometeu voltar ao seu reino, depois que seu profeta escreveu: "Voltarei em breve. Quanto ao dia e à hora, o próprio Filho não os conhece, mas somente meu Pai que está no céu", segundo suas próprias palavras na terra. E a humanidade o espera com a mesma fé de outrora, uma fé mais ardente ainda, porque quinze séculos se passaram desde que o céu deixou de dar testemunhos ao homem.

Daquilo que o coração diz
O céu não dá testemunho.

E só resta a fé no referido coração. É verdade que numerosos milagres se verificavam então; santos realizavam curas maravilhosas. A Rainha dos Céus visitava certos justos, de acordo com a biografia deles. Mas o diabo não dorme; a humanidade começou a duvidar da autenticidade daqueles milagres. Naquele momento nascia na Alemanha uma terrível heresia que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardente como um facho, caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas."* A fé dos fiéis só fez redobrar. As lágrimas da humanidade elevam-se para ele como outrora, aguardam-no, amam-no, espera-se nele como antes... Depois de tantos séculos, a humanidade reza com fervor: "Senhor Deus, dignai-vos aparecer-nos", depois de tantos séculos grita ela para ele, ele que quis na sua misericórdia infinita, descer entre seus fiéis. Outrora, já havia visitado justos, mártires, santos anacoretas, como o narram suas biografias.

Entre nós, Tiútchev, que acreditava profundamente na verdade de suas palavras, proclamou que:

Sob o peso da cruz, esmagador,
O Rei dos Céus, de servo disfarçado,
Toda te percorreu, terra natal,
O solo teu inteiro abençoando.

Mas eis que quis ele mostrar-se por um instante pelo menos ao povo sofredor e miserável, ao povo que se arrastava no pecado, mas que o ama ingenuamente. A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias no país ardiam as fogueiras à glória de Deus e

Em esplêndidos autos de fé
Queimavam-se horríveis heréticos

Oh! não foi assim que ele prometeu voltar no fim dos tempos, em toda a sua glória celeste, subitamente, "como um relâmpago que brilha do Oriente ao Ocidente". Não, quis visitar seus filhos, no lugar onde crepitavam precisamente as fogueiras dos heréticos. Na sua misericórdia infinita, volta ao convívio dos homens sob a forma que tivera durante os três anos de sua vida pública. Ei-lo que desce para as ruas ardentes da cidade meridional, onde, justamente na véspera, na presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, o grande inquisidor mandara queimar uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei.** Apareceu docemente, sem se fazer notar, e — coisa estranha — todos o reconheciam. Seria uma das mais belas passagens de meu poema explicar a razão disso. Atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à sua passagem e segue-lhe os passos. Silencioso, passa ele por entre a multidão com um sorriso de compaixão infinita. Seu coração está abrasado de amor, seus olhos desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e despertam o amor nos corações. Estende-lhes os braços, abençoa-os, uma virtude salutar emana de seu contato e até mesmo de suas vestes. Um velho, cego de infância, exclama em meio da multidão: "Senhor, cura-me e eu te verei". Uma casca cai de seus olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão sobre as marcas de seus passos. As crianças lançam flores à sua passagem, canta-se, grita-se: "Hosana!" "É ele, deve ser ele!", exclama-se. "Só pode ser ele!" Ele pára no adro da Catedral de Sevilha no momento em que trazem um pequeno ataúde branco no qual repousa uma menina de sete anos, a filha única de uma pessoa notável. A morta está coberta de flores. "Ele ressuscitará tua filha", gritam na multidão para a mãe lacrimosa. O padre, que sai a receber o ataúde, olha com ar perplexo e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança aos seus pés: "Se és tu, ressuscita minha filha!", e estende os braços para ele. O cortejo pára, deposita-se o caixão sobre as lajes. Ele a contempla, cheio de compaixão, e sua boca ordena docemente mais uma vez: "Talitha kumi,*** e a menina se levantou". A morta se levanta, senta-se e olha em redor de si, sorridente, com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas brancas que haviam depositado no caixão.

* Do Apocalipse, de São João
** "Para a maior glória de Deus." Mote dos jesuítas.
*** “Jovem, levanta-te." São Lucas, C. VII, v. 14. Palavras da linguagem aramaica, pronunciadas por Jesus Cristo quando da ressurreição do filho da viúva de Nain.


[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

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