DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte IV]
"Decide, pois, tu mesmo quem tinha razão: tu, ou aquele que te interrogava? Lembra-te da primeira pergunta, do sentido, senão do teor: queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão. Mas tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o espírito da terra se insurgirá contra ti, lutará e te vencerá, que todos o seguirão, gritando: 'Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!' Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. 'Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!' Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá teu templo. Em seu lugar elevar-se-á novo edifício, uma segunda torre de Babel, que ficará sem dúvida inacabada, como a primeira, mas tu terias podido poupar aos homens essa nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque virão eles procurar-nos, depois de ter penado mil anos para construir sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão de novo) e clamarão: 'Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do céu não no-lo deram'. Então, acabaremos a torre deles, porque para isso basta apenas o alimento, e nós os nutriremos, utilizando-nos falsamente de teu nome, e os faremos crescer. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: 'Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis'. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Tu lhes prometias o pão do céu; ainda uma vez, é ele comparável ao da terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas seguir-te-ão por causa desse pão, mas que acontecerá aos milhões e bilhões que não terão a coragem de preferir o pão do céu ao da terra? Será que só preferes os grandes e os fortes, aos quais os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas te ama, só serviria de matéria explorável? Eles também nos são queridos, os seres fracos. Embora depravados e revoltados, tornar-se-ão finalmente dóceis. Ficarão espantados e acreditarão que somos deuses por ter consentido, pondo-nos a comandá-los, em assumir a liberdade que os atemorizava e reinar sobre eles, de modo que ao final terão medo de ser livres. Mas lhes diremos que somos teus discípulos e reinamos em teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque então não deixaremos que te aproximes de nós. E será essa impostura que constituirá nosso sofrimento, porque será preciso que mintamos. Tal é o sentido da primeira pergunta que te foi feita no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo.
[continua]
Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8
Assustador...
ResponderExcluirDifícil decidir o que é mais chocante: a disposição de manipular ou a de ser manipulado.
Já tive um pouco de ambas. Não quero mais nenhuma centelha de nenhuma delas.
"mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes disso?"
Sim, Ele sabia. E veio assim mesmo.
Deus que nos ajude a não ter nenhuma centelha delas.
ResponderExcluir