29 de janeiro de 2009

Ha'eve Irû

Preparávamos as malas para deixar a tribo depois de dez dias. Seria o último pôr-do-sol na aldeia. Agudos feixes de luz atravessavam o horizonte como lâminas douradas que, tendo ferido o céu, banhavam-no em púrpura lancinante e agulhavam agora meus olhos entreabertos, enebriados pela visão do crepúsculo. O calor incrível do dia era agora empurrado para longe pela brisa macia que trazia consigo o veleiro da noite e todo seu frescor. Chegava sempre assim, deslizando suave sobre o horizonte amplo do cerrado e tocando minha pele como fria e leve seda que seduz um corpo fadigado e o levanta, renova, remoça.

Ha'eve Irû havia dito que viria. Queria despedir-se. Quando nos falamos, alguns dias antes, encheu-me de alegria ao lembrar meu nome e referir-se a mim como amigo. Tinha-o em alta conta desde que nos conhecemos dois anos antes, apesar de termos convivido por pouco mais do que uma semana. Revê-lo, dias atrás, ainda que por poucos instantes, foi para mim motivo de acanhada euforia.

Quando a noite já apontava discreta atrás do último horizonte e eu ainda esperava vê-lo uma última vez, surgiu do lado oposto ao sol, à contra-luz, como que emergindo das sombras. Aproximou-se lento e discreto, como todo índio. Eles não são, como nós, chegados a euforias e despeendimentos. São em tudo circunspectos e reservados. Sorriu como sempre sorri, apertou-me a mão e, à meia-voz, disse ter me trazido um presente. Pediu-me que reunisse a família e um outro amigo, pois tinha algo a nos entregar. Nos juntamos debaixo do teto de palha de um sombrero, Ha'eve Irû à nossa frente, as últimas lâminas douradas do sol sendo engolidas pela sombra, e o ouvimos. Enquanto articulava tímido um breve discurso agradecendo nossa presença, empunhou o violão que trouxera a tiracolo e abriu um pequeno caderno escrito à mão. E ofereceu-nos seu inesperado e comovente presente - cantou para nós, em sua própria língua, um hino de gratidão a Nhandejara, o Deus Kaiowá, o Deus criador, que havia nos levado até ali, nos colocado frente a frente e misturado nossas vidas em rico e amoroso caldo humano e cultural.

Na manhã seguinte pegamos a estrada com a alma sulcada pela marca aguda e pungente daqueles dias - especialmente da última noite e seu presente terno e eterno.


Ha'eve Irû
Letra da música no caderno - dialeto kaiowá

Ha'eve Irû. Bom Amigo, em guarani.

26 de janeiro de 2009

22 de janeiro de 2009

Pedigree

O discípulo serve a Deus explicitamente, tendo consciência de que assim faz quando serve os irmãos declarados como irmãos, na fé. Porém, além disso, Jesus deixa claro que o discípulo precisa deixar de ver os irmãos entre os homens, e, assim, passar a servir a todos os homens como irmãos.

O galardão do homem cresce nele quando a vida deixa de estar dividida entre crentes e incrédulos como sendo objeto de tratamento diferenciado por parte do discípulo.

O modelo escatológico do amor humano é o chamado “Bom Samaritano”, que, seguindo o seu caminho, dentro ou fora dos termos geográficos de seu andar, vai juntando gente quando encontra, sem perguntar jamais pelo pedigree ou pela origem ou pelo projeto de vida.

19 de janeiro de 2009

Ecofonte

Quem não recebeu um email com o sugestivo texto de assinatura parecido com esse?

Antes de imprimir pense em sua responsabilidade com o meio ambiente.

Interessante, sem dúvida. Um pequeno hábito de grandes consequências. Agora, porém, a agência de comunicação Spranq levou a idéia adiante e desenvolveu, para quando imprimir é a única saída, uma fonte ecologicamente (ou economicamente, dependendo do ponto de vista) correta.

Na onda da computação verde, a agência de comunicação SPRANQ da Holanda desenvolveu uma fonte de caracteres TrueType ecologicamente correta: o Spranq Eco Sans — ou apenas Ecofont — que, segundo seus criadores, pode economizar até 20% de tinta numa impressão.

Baseada no Vera Sans (uma fonte open source) a grande sacada da Ecofont é que seus caracteres são vazados com pequenos furos que, na hora de imprimir, diminui a área de cobertura de tinta.

Já instalei a minha.

Fonte: ZumoBlog

15 de janeiro de 2009

Aos brasileiros

Por décadas os missionários tentaram mostrar que fé combinava bem com austeridade. Reverência virou sinônimo de rigidez. Mas brasileiro chega atrasado, não se sente bem de terno e gravata e detesta ambientes protocolares. Enquanto os cultos solenes exigiam becas, togas e hinos com música e métrica rebuscadas. O protestantismo manteve-se estrangeiro enquanto insistiu em liturgias suntuosas que não combinavam com a informalidade nacional. Os pentecostais conseguiram enorme penetração nos estratos mais populares porque contextualizaram os cânticos, improvisaram os sermões e bagunçaram a liturgia.

(...) para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que se fale aos sentimentos mais que à mente; que se transmitam os afetos divinos e não os áridos pressupostos da teologia; que se promova a solidariedade; que se busque a justiça; e que se produza uma geração de mulheres e homens bons, parecidos com Jesus de Nazaré.

12 de janeiro de 2009

8 de janeiro de 2009

2008 em fotos

2008 em 120 fotografias, segundo boston.com.

Rapaz encontrado vivo sobre escombros no Haiti.
Veja as outras 119 fotos aqui.

5 de janeiro de 2009

Lição de planejamento

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

19.

Todo mundo sabe que um bom aventureiro é, inevitavelmente, um bom estrategista e um bom planejador. Uma grande excursão por lugares ermos exige muito preparo físico, psicológico e logístico. Por conta dessa característica é que grandes aventureiros como Klink e Niclewicz, entre um e outro projeto grandioso, sustentam-se dando palestras para empresários de grandes corporações. VP disso, CEO daquilo, managers e tudo mais. Aquela gente toda que aparece nas excitantes reportagens de revistas como Você S/A.

Eugênio sabia muito bem disso. Já havia passado alguns meses desde que ele e Avelino propuseram o desafio. A parede de granito que pretendiam galgar era monumental. Passaram várias horas das últimas semanas planejando os detalhes da escalada. Equipamento, alimentação, roupas, horários, transporte. Tudo acertado. Sexta-feira deixariam suas casas na direção do litoral.

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A trilha de acesso à parede era longa e cansativa. Depois do rio e daquela árvore caída, tornava-se exageradamente íngreme. Abasteceram os cantis antes de encarar a subida final. Os veios de granito apareciam esporadicamente entre as copas da árvore da densa floresta atlântica. Aos poucos, conforme subiam, a vegetação tornava-se mais rala. A parede mostrava-se cada vez mais imponente. Quando chegaram à base do grande afloramento de rocha, o sol já estava alto. Retiraram o equipamento das mochilas e trataram de arrumar tudo com muito cuidado. Dali para frente a situação seria mais delicada.

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Partiram de ônibus para o leste em direção à grande serra litorânea. Na rodoviária, pouco antes de embarcar, Eugênio lembrou que nenhum dos dois tinha relógio e comprou um prestobarba na farmácia da rodoviária, que vinha com um relógio de brinde.

Desceram do ônibus tarde na noite. Teriam que passar a noite na pequena cidade litorânea e pegar o primeiro ônibus em direção à serra no dia seguinte. Os planos eram dormir na rodoviária mesmo, mas a polícia não permitiu. Vagaram à esmo pelas ruelas vazias da cidadezinha, procurando algum lugar onde pudessem dormir. Perceberam um grande movimento em uma praça no centro, e descobriram por acaso que estava acontecendo ali, justamente naquele fim de semana, o Festival Universitário da Canção. Aproveitaram um pouco do som ao vivo na praça antes de seguirem caminhando. Encontraram um albergue da prefeitura abarrotado de gente. Todos os beliches ocupados e muita gente dormindo pelo chão. Conversando com o porteiro, descobriram que o ônibus que pegariam no dia seguinte passava de fronte ao albergue. Dormiram ali mesmo, no único fiapo de chão que encontraram, na frente da porta do banheiro. A noite não foi das melhores. Muitos colegas de albergue tiveram que entrar às pressas no banheiro por conta dos efeitos do excesso de cachaça. Levaram alguns pisões e demoraram um certo tempo até se acostumarem com o cheiro.

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A escalada não era tecnicamente difícil, é verdade. Era fácil até. Mas as dicas que tinham sobre a parede não eram muito precisas e estavam cerca de 4 horas atrasados, por conta do incidente daquela manhã. Tentaram ser rápidos e recuperar o tempo perdido, mas de maneira absolutamente contraproducente. Levados pela insegurança e os arrepios descontrolados na espinha que aquela parede lhes causava por conta de sua inexperiência, optaram por uma escalada tola. O guia subia sem mochila até a parada, aIçava sua mochila em seguida e dava segurança para o segundo. Por mais que corressem, não conseguiam remir o tempo. E por conta da pressa, deslocaram-se da linha natural da via, passando por veios de rocha, caraguatás e taquaras à esquerda e perdendo de vista as proteções fixas pelas quais deveriam passar. Tinham que encontrar o platô onde passariam a noite, mas não conseguiram. A noite veio e os pegou desprotegidos no meio da grande parede. Inseguros, preocupados e receosos, resolveram dormir por ali mesmo, aguardando a alvorada, quando poderiam reencontrar a via com mais facilidade. Acomodaram-se como puderam entre os tufos de taquaras na parede vertical. Amarraram-se à elas e tentaram dormir pendentes ao vento, a algumas centenas de metros do chão. Eugênio ainda lembrou-se de programar o relógio/prestobarba para despertar bem cedo. Teriam que correr muito parede acima se quisessem sair de lá a tempo de pegar o ônibus na BR, no dia seguinte.

Antes de adormecer, ainda conseguiram contato com as lanternas com algum ser humano que dormia em um cume próximo daquela mesma serra. O céu acima deles estava estrelado mas a densa neblina da noite úmida subia da floresta e passava por eles em rajadas de vento gelado. Comeram suas barras de cereais e chocolates, e caíram no sono, embalados pelo cansaço do longo dia.

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Apesar do cheiro, do chão úmido e do movimento constante da madrugada, dormiram bem. Tão bem que acordaram somente com o barulho do ônibus pegando alguns passageiros em frente ao albergue. Levantaram assustados, recolhendo seus pertences e correndo em vão até o ponto. Já tinham sido deixados para trás. Houve, ao menos, tempo para o café da manhã. Esperaram 4 horas até o ônibus seguinte que os levou até o ponto final, no pé da serra. Dali em diante, mais 3 horas de caminhada em ritmo forte. Passariam pelo mais belo rio da região, com suas muitas quedas e piscinas naturais de água espantosamente transparente que, refletindo as copas das árvores, ganhava incríveis tons de esmeralda. Depois do rio, e da árvore gigantesca caída, seguiriam pela trilha íngreme em direção ao afloramento rochoso.

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O relógio foi barato, mas teve seu preço. Talvez a umidade da noite gelada ao relento, talvez o vento cortante que balançava as taquaras e os corpos nela apoiados, ou talvez um defeito qualquer de fabricação absolutamente aceitável em um relógio daqueles, fez com que a contagem do tempo parasse. O sol, porém, seguiu seu curso indiferente ao pequeno relógio de pulso e aos dois minúsculos grãos de areia que pendiam em sono profundo em uma parede daquela cordilheira banhado por um vasto oceano daquele planetinha azul. Quando libertaram-se finalmente dos fortes braços de Morfeu, o sol já encontrava-se a meio caminho do pino. Uma breve reunião se fez necessária. Ambos discutiram o que fazer naquela situação. Se quisessem, conforme o programado, sair por cima da parede e alcançar a BR no alto da serra a tempo de pegar o ônibus, teriam que ter acordado antes mesmo de o sol despontar no horizonte. Concordaram que o mais sensato seria abandonar o plano original e voltar por onde vieram.

Deram-se ainda ao trabalho de reencontrar a linha da via e alcançar o platô onde deveriam ter dormido. Desceram dali até o rio, onde passaram algumas horas mergulhando e descansando. Retornaram pelo mesmo caminho, diretamente até o planalto.

Do começo ao fim, como de costume sempre que Eugênio e Avelino faziam algo juntos, pouca coisa saiu conforme o programado. Nada, no entanto, pareceu-lhes ter dado errado. Eram, no final das contas, histórias incríveis as que tinham para contar. E incríveis os momentos que desfrutavam juntos. O sucesso não estava em cumprir à risca o planejado, nem tão pouco em alcançar o objetivo proposto. O sucesso estava no improviso, na assimilação, no convívio, no silêncio, no medo, no arrependimento, nos novos horizontes, nos mares de nuvens, na lua refletindo sobre eles, no vento cortante, na conversa furada, sem pé nem cabeça, na fome, na dor, no frio.

Eram medíocres as aventuras, mas incríveis as histórias.



















Encostei-me a ti, sabendo bem
que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem,
depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso,
e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar,
quando caí.

Cecília Meirelles, descrevendo com absoluta
precisão a sensação que dá um minúsculo
hurp, coperhead ou clif, sustentando nossos
frágeis corpos a centenas de metros no chão.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno
14. Resgates compulsórios 1
15. Resgates compulsórios 2
16. Resgates compulsórios 3
17. Resgates compulsórios 4

18. Resgates compulsórios 5

19. Lição de planejamento