29 de setembro de 2008

Meia Lua Inteira

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

10.

O bloco de granito subia vertical em direção aos céus. Não era um bloco muito grande. Cerca de 20 metros acima do solo, o sol refletia no tom ocre da rocha, deixando-a dourada. À sombra, o vento deixava o ambiente gelado. Os dois companheiros de inúmeras escaladas, caminhadas e roubadas, observavam a fissura que o diedro formava no encontro perpendicular dos planos. Iniciava vertical, larga e rasa, com poucas chances de entalamento das peças novinhas que brilhavam em suas mãos. Subia convicta, afunilando, tornando-se mais profunda e angular. Oito metros acima, dobrava à esquerda em uma curva perfeita lembrando uma meia-lua e, depois de alguns metros seguindo paralela ao solo, subia vertical novamente. Na saída dessa última curva fechada, a fissura abria-se generosa e profunda, pronta para o entalamento perfeito de uma peça robusta. Até lá, somente pequenas peças encaixadas com certa precariedade evitariam que o corpo estalasse no chão duro no caso de uma queda.

O mais novo deles, e mais afoito, e mais desmiolado, elegeu-se para a ponta da corda. Nuts variados e alguns friends alojaram-se na bandoleira. O equipamento novo revelava a inexperiência do rapaz nesse tipo de escalada. De qualquer forma, sentia-se confiante. Entrou na via dando um passo largo sobre o buraco que ficava logo abaixo da fissura. A queda ficava muito mais indesejável com a presença daquela cavidade infeliz. Era difícil manusear as peças com as mãos tremendo, mas o rapaz prosseguia confiante, enfrentando corajosamente as incontroláveis descargas da ácido lático e adrenalina no corpo. Na entrada da meia lua a fissura praticamente desaparecia. Os poucos metros de deslocamento horizontal eram o momento mais sensível. As pernas começavam a vibrar descontroladas enquanto a mente o acusava de imbecil por estar ali, naquela situação ridícula. Em um movimento mais brusco, na esperança de recobrar o equilíbrio e controle do corpo, aconteceu o impensável. O som dos mosquetões deslizando pela corda, os estalos leves e agudos dos choques entre metais e os olhos arregalados do companheiro que dava segurança, anunciaram que a situação estava bem pior do que se podia imaginar. As quatro pequenas peças que haviam sido instaladas fissura abaixo, e que seriam as responsáveis por evitar o desagradável contato abrupto do corpo com o solo, encontravam-se, agora, todas elas, amontoadas na mão do segurança, que olhava atônito para seu companheiro.

- Muita calma nessa hora! – sussurrava-lhe a mente. As pernas e braços não correspondiam aos apelos da consciência e vibravam cada vez mais. Os olhos fixaram-se desesperados naquela abertura abençoada e salvadora da fissura na última curva. Todos os músculos tensionaram. Durante breves segundos, corpo e mente travaram uma batalha colossal, ambos conscientes de que a salvação encontrava-se dois ou três passos ao lado, naquela bendita curva. Os olhos vasculharam cada detalhe da rocha vertical e a mente visualizou cada um dos próximos movimentos detalhadamente. De longe o rapaz intuiu cuidadosamente a abertura da fissura, e previu exatamente que peça seria colocada ali, caso conseguisse alcança-la. Moveu-se lento e convicto em direção à salvação. Nada seria capaz de desviar-lhe a atenção. Um, dois, três... pronto! Mão cheia na agarra, pés chapados na rocha, corpo lançado firmemente para trás, procurava agora, atabalhoado, a peça previamente calculada para aquela abertura. Apesar da sensação de alívio, o corpo inteiro vibrava como bambu verde por conseqüência da superdosagem de elementos químicos que o inundaram naqueles segundos. Proteção fixada, corda passada. Os mais longos segundos da vida do moço encerraram naquele instante. Ainda houve sangue de barata suficiente para seguir fissura acima, até a parada.

Naquele dia, aquela fissura mixuruca transformou-se, para aquele rapaz, na mais incrível parede de granito do planeta.


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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira

25 de setembro de 2008

A igreja de Vinícius

Dia desses ouvi a sugestão de que, para se criticar a igreja institucional com propriedade, seria preciso primeiramente tecer uma definição bíblica de o que é igreja. Seria, sem sombra de dúvida, algo bastante oportuno, não fosse o fato de que o adjetivo “bíblico” tem pouquíssimo significado na prática. Porque todas as heresias são bíblicas, bem como todas as variações teológicas do cristianismo. Arminianismo e calvinismo são bíblicos. É bíblica a salvação pela fé, tanto quanto pelas obras. E todas as variações escatológicas são bíblicas. Como se não bastasse essa complicação, que por si só já é bastante desestimulante, a bíblia simplesmente nega-se a dar qualquer que seja a definição de igreja. Nem o mestre, nem nenhum dos seus apóstolos se deram ao trabalho de definir esse conceito. Simplesmente passaram a usar o termo para designar quaisquer grupos de seguidores de Jesus espalhados por qualquer canto. Referiam-se ora a um grupo abrangente e universal (Mt 16.18), ora aos cristãos de uma cidade (Rm 16.1), ora a um pequeno grupo reunido em alguma casa (Rm 16.5), deixando claro que não estavam preocupados com definições acertadas. Faziam o que lhes “parecia bem” conforme a situação, deixando claro que as decisões eram circunstanciais (At 15.22). Em um momento é uma só (1 Co 10.32), logo em seguida são muitas (1 Co 11.16). Paulo ainda sugere uma longa série de atividades e conselhos destinados à igreja de Corinto, alertando, inclusive, para que a mulher permaneça calada, “porque é indecoroso para a mulher o falar na igreja”. Aí começa uma ginástica teológica que procura separar aquilo que é regra universal daquilo que é cultural, motivada pela necessidade de definição correta, descritiva e detalhada da igreja.

Do ponto de vista do novo testamento, porém, tudo que diz respeito à igreja está relacionado tão somente ao agrupamento voluntário de gente que reconhecia um mesmo espírito entre si, o espírito do evangelho de Cristo, das boas novas da salvação, da mensagem da reconciliação, da graça, do amor e do acolhimento mútuo. Era gente encontrando-se por gosto, por prazer, por reconhecer-se no outro. Era gente disposta a compartilhar dores, sofrimentos, alegrias, prazeres, vinho e pão. E, nesse compartilhar voluntário de vidas, os dons eram livremente manifestos, e havia crescimento, fortalecimento, comunhão, ensino, cura, repreensão amorosa, serviço...

O que temos hoje como elementos intrínsecos à igreja, não passa de agregados, enxertos, enfeites, penduricalhos. Não são todos necessariamente maus, mas certamente não são inerentemente bons. As hierarquias, os cargos, a membresia, as ordenações, os rituais, os pré-requisitos, tudo isso é circunstancial e, por isso, descartável ou, para os mais apegados, renovável. A melhor definição de igreja foi dada por Vinícius de Morais:

Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa não tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos bobos, número zero

(Vinícuis de Moraes no musical “A Arca de Noé”)

Está aí a melhor definição bíblica de igreja que pude conseguir. Uma casa não-casa, cheia de graça e construída com esmero em lugar nenhum, porque é móvel, ágil, fluída, como uma pipa carregada pelo vento. E esse é o grande mistério e o grande pavor. Porque nosso desejo é sempre o de controlar, contabilizar, proteger e erguer, com o suor do nosso rosto, uma nova Torre de Babel.

A casa
Vinícius de Moraes





Veja também:
The Beatles e o Evangelho do Reino

22 de setembro de 2008

O campo dos Wagner [5]

Lúgubre

A primeira coisa que os Schmidt fizeram quando ouviram novamente o grito pavoroso, foi correr até o quarto onde abrigavam o pequeno Ernst. Ele permanecia dormindo tranquilamente. Enquanto a família reuniu-se no quarto, o pai precipitou-se para fora do rancho, correndo em direção ao campo dos Wagner. Vários moradores faziam o mesmo, encontrando-se das estradas ou picadas no meio dos capões. Alguns vinham armados com revólveres e espingardas, outros com pás e enxadas, outros ainda, como Schmidt, corriam de pijama e sem nada nas mãos. Foi ele o primeiro a chegar no pasto. Os que o seguiam, reduziam o passo lentamente, com medo de descobrir o que era aquele perfil volumoso no alto da colina, próximo da floresta, escondido pela penumbra da noite.

A cena era lúgubre. A lua, que projetava a sombra da floresta no topo do morro, iluminava com facho certeiro de luz o volume ainda irreconhecível no topo descampado. A luz suave separava a silhueta em duas formas. A menor foi reconhecida primeiro. Em estado catatônico, com os olhos esbugalhados, a boca entreaberta e olhando fixamente para o estranho volume escuro alguns metros a sua frente, estava o pastor. Aos poucos o volume maior foi tomando forma na retina de Schmidt e dos que vinham atrás dele. Enquanto os olhos acostumavam-se com a falta de luz, formou-se lentamente diante de todos a cena que marcaria para sempre a retina de cada habitante daquele lugar. Empilhados naquele canto, sem uma gota de sangue, estavam sete corpos desnucados. À sua frente, marcas circulares deixavam cicatrizes fumegantes no chão.

15 de setembro de 2008

O campo dos Wagner [4]

Reunião

Ernst não parecia mais o mesmo rapaz. Alterava o humor de forma abrupta, sendo inundado por rompantes de pavor intenso. Recolhia-se em algum canto, amuado, suando, sempre com os olhos fixos em alguém, como se tal pessoa fosse a ameaça que lhe assombrava. A primeira reação depois do incidente do grito foi durante um jantar na casa dos Schmidt. A família o havia recebido depois daquela noite. O pequeno passou alguns dias isolado, recebendo apenas visitas esporádicas, até que os Wagner apareceram por lá. Antes mesmo de entrarem na casa o rapaz já se alterou. Como um cão desconfiado com o som que mais ninguém ouve, Ernst ergueu-se da mesa e permaneceu estático, vasculhando todos os cantos com os olhos, quando a tímida batida na porta rompeu o silêncio. A família estava assustada quando o pai rompeu a inércia e dirigiu-se à porta, para onde agora Ernst olhava insistentemente. Quando a imagem dos Wagner invadiu a casa, o pequeno jogou-se apavorado no chão, rastejando rapidamente para um canto onde encolheu-se como um rato acuado. Ilmar ainda tentou falar com o rapaz, mas quando aproximou-se, a expressão de pavor foi tão intensa que foi impedido pelos Schmidt, que lhes pediram que deixassem a casa. Tais reações tornaram-se constantes nos dias seguintes, não só com a presença dos Wagner, que tentaram em vão aproximar-se do rapaz em outras ocasiões, mas com algumas outras pessoas específicas. Somente o pequeno grupo de amigos que encontrou-se sorrateiramente logo após a misteriosa morte do gado percebeu a coincidência macabra. Cada um deles, e ninguém mais, causava a mesma reação em Ernst. Decidiram não ver mais o rapaz e marcaram um novo encontro na mesma cabana.

O pequeno Ernest obviamente não faria parte dessa reunião. Foram chegando aos poucos e não trocaram mais do que uma ou duas palavras, às vezes somente um leve aceno com a cabeça até que todos estivessem reunidos. Ilmar foi o último a chegar e apareceu acompanhado do pastor. As reações foram exaltadas. Envolver mais um nessa história não lhes pareceu atitude inteligente. Fazer isso sem consulta soou como traição. Apesar disso, depois de alguma discussão, o pastor acabou sendo recebido com alívio pelo grupo. Era um homem bom, com ouvido gigante e boca pequena e mostrou-se sempre disponível e compreensivo em todas as questões que a comunidade lhe trazia.

Os homens não sabiam por onde começar. Levantaram inúmeras perguntas, mas nenhuma foi respondida. Tampouco esperavam por qualquer resposta que fosse. Sabiam que não as teriam. A história foi repassada em todos os detalhes desde a primeira aparição das marcas no pasto. Ilmar contou sobre a alteração do som nos estranhos aparelhos da equipe de pesquisa. Procuraram saber que lhes passava informação para que tivessem chegado sempre tão rapidamente depois de cada estranheza, mas nem nisso conseguiram alguma informação. Decidiram que esse seria seu objetivo. Descobrir quem passava informações para essa gente. Já davam a reunião por encerrada quando o pastor propôs que orassem. Pois foi precisamente no momento do solene silêncio que em geral precede uma oração que o vento soprou intenso de dentro da floresta.

Antes:
O campo dos Wagner [1] - Aparições
O campo dos Wagner [2] - O pequeno

O campo dos Wagner [3] - Reunião

12 de setembro de 2008

Reticências [3]

3. À luz de um abajur

Uma das muitas aplicações da inusitada afirmação de Jesus de que o Reino de Deus é das criancinhas, está na forma como elas lidam com a narrativa. Abra um livro, sob a luz amarela de um abajur, do lado de um menino de 5 anos, no silêncio de seu quarto, entre brinquedos e bonecos, com a sombra da noite e seus ruídos estranhos entrando pelas frestas da veneziana, e comece a ler uma história. O pequenino e frágil menino pode tornar-se herói, gigante, mago, rei ou monstro. Ele se assusta, ri, arregala os olhos, observa calado, agarra seu braço com força ou reclina-se sobre seu peito com o sorriso meigo de um anjo.

Ao libertar-me das letras de chumbo do livro preto, pude iniciar minha jornada à infância. Não é fácil. Não é natural ou intuitivo para quem abandonou há anos a beleza da imaginação e entregou-se ao mundo cinza da objetividade. Mas é uma viagem que vale a pena. É um esforço compensador. Sentir a brisa morna dos montes da palestina ou os ventos terríveis e gelados das tempestades no mar da galiléia. Sentar entorno da fogueira e inalar o cheiro do peixe e o ar denso no momento do confronto entre o mestre e o homem que o negou. Ver em seus olhos a graça e o perdão inesperados. Notar o peso dos ferros nos braços e pernas de Paulo, no canto úmido e fétido de uma prisão romana. E dançar em festas de casamento.

Penetrar na história nos faz entender que as letras são carregadas de emoções, embotadas em suor e lágrimas, embaladas em músicas e danças. Que há no ar tensão, medo, angústia, sarcasmo, dúvida, alegria, receio, esperança, desalento, êxtase, cansaço e renovo. Que os corpos da história se tocam, exalam odores, impregnam-se de pó, abraçam-se, trocam carinhos, afetos, provocações, empurrões, desavenças, olhares de ódio, inveja e perdão.

A narrativa é inconclusa, como é a humanidade. É cheia de variáveis, de caminhos, de circunstâncias, de nuances e possibilidades. Ela liberta a bíblia da clausura das considerações finais e a eleva à altura do fantástico, que extrapola tempo, espaço, cultura, lei, tradição e mito.

A leitura conceitual da bíblia é conclusiva. É a busca pelo ponto final.
A leitura narrativa é incerta. É o encontro com as reticências. Experimente...

Veja também:


RETICÊNCIAS
1. Morte
2. Vida
3. À luz de um abajour

8 de setembro de 2008

O campo dos Wagner [3]

Pavor

O grupo reunido no salão da igreja deliberava sobre formas de aumentar a produção. Haviam chamado um técnico da cidade que viera para analisar a situação. Já era tarde e a longa discussão na cooperativa manteve grande parte da cidade acordada na expectativa dos resultados das complexas pesquisas que o técnico fizera nos últimos dias. Talvez a tensão da situação difícil em que se encontravam e o avançado da hora tenham feito com que aquele grito parecesse mais agonizante do que realmente foi. O fato é que berro fez-se ouvir por quase toda a vila. Todos sentiram nos pelos da nuca o pavor que o acompanhava. Crianças correram apavoradas em direção às mães que as abraçaram como que protegendo de perigo iminente. Muitos correram para as portas e janelas tentar vasculhar a origem do berro. Outros saíram desvairados pelas ruas e campos e florestas movidos pela angustia que lhes imprimiu tão apavorante som. Os que se cruzavam pelo caminho tentavam arrancar informações uns dos outros. Os homens da cooperativa é que puderam indicar a origem do som com mais precisão. Vinha de perto deles e havia certamente entrado pelas janelas voltadas para o leste. Correram apressados nessa direção, que levava diretamente ao pasto dos bois. Quando chegaram lá, encontraram Ernst, sentado no mesmo local onde tantas vezes fora encontrado. O pequeno trazia estampado nos olhos o mesmo pavor que emergiu daquele grito. À luz de lanternas, a única coisa que encontraram ali além do rapaz foram marcas circulares no pasto.

Ficou evidente para todos que o grito veio do rapaz. Seus olhos diziam isso, apesar de ninguém ter conseguido arrancar-lhe mais nenhum som. Naquela mesma noite, e em todo dia seguinte, um grupo de homens vasculhou o local e áreas próximos atrás de algum rastro de outro elemento que pudesse ter estado lá, mas sem sucesso. Acharam por bem não divulgar a história, para que não chegasse aos ouvidos de ninguém além dos moradores. Decidiram retornar à rotina e tentar recuperar o ar pacato do local através do silêncio coletivo. Poucos dias depois, porém, os pesquisadores apareceram no local. Trouxeram uma série de aparelhos e vasculharam novamente todo o pasto monitorando cada centímetro com máquinas indecifráveis. Enquanto vasculhavam, Ilmar apareceu sorrateiro para acompanhar o movimento. Olhava de longe quando percebeu que o som constante dos aparelhos alterou o bastante para chamar a atenção da equipe. Enquanto o grupo tentava descobrir a origem da alteração, Ilmar afastou-se discretamente, sem ser percebido, ocultando-se entre arbustos. As máquinas, no entanto, permaneceram alteradas e, sempre que eram apontadas na direção dos pequenos arbustos, oscilavam com maior intensidade. A equipe deslocava-se na direção de Ilmar apreensiva e excitada. Como ainda estavam distantes, o homem conseguiu deslocar-se discreto até a floresta e bater em rápida retirada sem ser visto. O som das máquinas voltou a ser constante e inalterado.

Antes:
O campo dos Wagner [1] - Aparições
O campo dos Wagner [2] - O pequeno

5 de setembro de 2008

Reticências [2]

2. Vida

De forma inesperada e redentora, aquele pesado livro de capa preta ressurgiu do pó da terra leve e alado. Multicolorido, passou a borboletear diante de meu olhos e, para pegá-lo, tive que correr, pular, rolar, cair e levantar. Refletindo todas as cores do arco-íris, o livro agora fluído e impreciso, causou-me alumbramento.

É engraçado como se aceita que Deus, quando encarnado, revele a verdade através de metáforas, parábolas e alegorias. Bodas do cordeiro, virgens, ovelhas e bodes são permitidos ao Deus encarnado. Antes de sua manifestação em carne e osso, porém, lhe é proibido usar esse tipo de linguagem. Gênesis precisa ser literal. A torre de Babel também. E a arca de Noé. E o grande peixe de Jonas. A simples menção da possibilidade da metáfora abala os alicerces da fé da maioria dos cristãos que conheço.

Abandonei a limitada sala escura da objetividade e, como Alice, conheci o país das maravilhas; como Dorothy, fui levado por um redemoinho ao maravilhoso mundo de Oz.

Alguns podem apavorar-se com descrição tão festiva e fantasiosa do livro sagrado. Esses crêem que transformar esse manual em um livro de histórias fantásticas é depreciá-lo, reduzi-lo, limitá-lo. Engano terrível. Nenhum conceito pode ser maior que a narrativa. Nenhuma conclusão pode ser maior que a história em si.

As considerações finais são a clausura da história.

Veja também:


RETICÊNCIAS
1. Morte
2. Vida
3. À luz de um abajour

1 de setembro de 2008

O campo dos Wagner [2]

O pequeno

A carne era tão saborosa quanto qualquer outra. Durante o preparo não ouve palavra alguma. O desdém das brincadeiras deu lugar a solene desconfiança. Ninguém ousou fazer pergunta, qualquer que fosse, tampouco questionar a possibilidade de comer aquele animal. Simplesmente carnearam e assaram. A primeira lasca de carne suculenta foi deitada solenemente sobre a tábua e picada em oito pequenos pedaços. Um para cada presente. O ritual foi quase sacro, como a santa ceia em alguns redutos protestantes. Cada um com seu naco de carne entre os dedos, olhando fixamente uns para os outros, procurando por algum sinal de qual seria o momento exato de ingerir o alimento. Ilmar Wagner, o mais novo e intempestivo dos irmãos, foi o primeiro a levar a carne à boca. Os outros o acompanharam em seguida. A mastigação foi lenta e apreensiva, até que Ilmar finalmente engoliu e escancarou a boca para mostrá-la vazia, soltando, em seguida, grande gargalhada. Daí em diante, todos voltaram a descontrair-se e, embalados pela carne e muito chope, comeram até se esbaldar.

Nem exército, nem pesquisadores misteriosos. Salvo algum turista curioso que aparecia eventualmente no sítio dos Wagner, ninguém mais havia tocado no misterioso assunto. Com o passar dos meses, caiu em absoluto esquecimento. Outra coisa era fonte de grande preocupação na vila. A produção de leite e, consequentemente, queijo, vinha caindo assustadoramente. Era o produto principal na pequena cooperativa de colonos e o ganha pão de quase todas as famílias do vale. Os Wagner presidiam a cooperativa e cinco dos seis amigos que estiveram no estranho banquete meses antes eram pessoas influentes nas decisões dos cooperados. O sexto presente era o pequeno Ernst. Chamavam-no de pequeno não exatamente pelo porte físico esguio, nem pela idade, como já demonstrava a barba crescida na cara. O adjetivo era simplesmente um modo carinhoso de tratar o piá. Ninguém na verdade sabia quantos anos tinha. Foi encontrado na vila aparentando algo em torno de 5 ou 6 anos, exatamente no mesmo local onde o gado, recentemente, aparecera morto. Daí em diante, foi educado por todos. Morou em várias casas, com várias famílias e até na igreja, sob os cuidados do pastor, durante algum tempo. Sumiu várias vezes, tendo ficado até semanas desaparecido, mas era sempre encontrado novamente naquele mesmo pasto. Não falava nada. Nunca se ouviu dele emissão de som algum. Nem choro, nem riso, nem gritos de dor. Permaneceu como consenso geral que lhe faltava algo na garganta, e deram todos por satisfeitos. Isso até aquela tarde.


Antes:
O campo dos Wagner [1]