27 de novembro de 2008

Tudo por água abaixo

Caso algum leitor não saiba, A Trilha está submersa em água, lodo e destroços junto com toda cidade de Blumenau, SC. Por esse motivo, a coisa aqui no blog ficará precária por algum tempo, até que as coisas se normalizem. Peço sua compreensão (caso queiram infos quentes sobre a catástrofe, acessem allesblau.net).

As últimas postagens que cairam suavemente aqui no blog, no meio desse cataclisma todo, haviam sido programadas antes que o céu despencasse sobre nossas cabeças, como temia Abracurcix.

Comigo e minha família está tudo em ordem, mas isso é uma inexplicável exceção. A cidade encontra-se num surreal estado de pós-guerra, entre tanques, helicópteros e tudo mais. Botas sete-léguas tornaram-se artigos do mais alto luxo.

Por hora há muita coisa pra ser feita por aqui e vai restar pouco tempo para escrever. Pelo menos por alguns dias.

Se alguém souber como fazer para acabar a chuva me avise com urgência.

Passarinho

Ele se apega no texto
Vai e prega heresia
Ele se apega na letra
Esquece a melodia
Ele se apega na regra
Não pensa na poesia

A letra mata
A letra é morta
A letra seca
A gente entorta

O tempo passa
O tempo voa
O vento é livre
Sai da garoa

A pipa solta no vento
É dança de alegria
O barco a vela sambando
Na imensidão da baía
O passarinho voando
É carta de alforria

O homem passa
A letra é morta
O vento é livre
A gente entorta

A letra mata
O tempo voa
A letra seca
Sai da garoa

Ele se apega no texto
A pipa solta no vento
Ele se apega na letra
O barco a vela sambando
Ele se apega na regra
O passarinho voando

Se ele se solta
É vento livre
Não tem cabresto
E a letra é boa

Se ele se lança
Fora do ninho
Batendo as asas
É passarinho



Poeminha inspirado no texto Reticências.

24 de novembro de 2008

O Eterno

Incríveis histórias medíocres de montanha – a série

13.

Creio que fomos feitos para voar. Não nossos corpos, mas a mente, o espírito, o interior, aquilo que realmente somos, aquilo que permanecerá no dia em que rompermos o lacre que nos separa do eterno. Ah, sim. Nesse dia voaremos como anjos, libertos das duras leis da física. Quando pousarmos, será puramente por prazer, jamais por cansaço ou necessidade. Se esse dia nos alcançar com a glória da presença daquele que nos criou, então, como definiu C. S. Lewis, toda a alegria daquele instante eterno será retroativa, e inundará de alegria todos os instantes passados. Toda dor, angústia, morte, perda, solidão, miséria e desgraça serão inundadas pela consciência da alegria eterna que se mostrará diante de nós. Mas esse dia não é hoje. Hoje estamos presos ao solo, acorrentados ao peso assombroso da gravidade. Graças à Deus, nem sempre.

Subimos o morro no meio da tarde, sob céu encoberto, com pequenos buracos de azul esbranquiçado tentando romper aquele teto cinza. O carro parou a poucos metros da suave rampa de grama que nos levaria a mergulhar no infinito. Com a mochila nas costas, caminhamos até o ponto ideal para o início do ritual.

O barulho do nylon sendo aberto, o estalar dos metais, o desenrolar das linhas e o cheiro peculiar que se desprende de todo o equipamento tornam o momento mágico. O cinza das nuvens havia engolido o mundo todo. Há nossa frente, dez metros além do nariz, somente os mistérios do infinito, do intangível, da ausência, do nada.

A brisa suave batia de frente em nossos rostos úmidos e gelados. Ouvíamos tão somente o vento, e nossa própria respiração. Havia espaço suficiente para as duas velas e estávamos dispostos em fila, já presos às linhas que sustentariam nossos corpos e soltariam longos e sutis assobios estridentes quando cortassem o ar.

No preciso instante em que o corpo projeta-se para frente, as mãos conduzindo firmes os tirantes à sua posição ideal, aquele tecido inerte que jazia sobre a relva ganha vida, infla-se, ousado, lançando-se corajosamente adiante, retesando confiante as linhas, os tirantes, posicionando-se alinhado sobre nossas cabeças e, finalmente, arrancando do solo essa casca que nos aprisiona. No instante seguinte, rimo-nos por termos alcançado uma metáfora alada do eterno. Já libertos do solo, somos impiedosamente engolidos pelo cinza infinito e úmido que nos cercava. Desaparecemos do campo de visão de todos. Atrás de nós, desaparece a origem. Adiante, mantém-se em segredo o destino. Vemos apenas um ao outro, às vezes nem isso. Mantemo-nos próximos apenas pela voz, pela troca de palavras eufóricas e solenes. O cinza nos engole e nos revela, enquanto prosseguimos firmes adiante, afastando-nos dos perigos da encosta invisível. E navegamos por longos minutos no infinito, até que, sutilmente, algumas cores começam a somar-se ao cinza.

Aos poucos, formas tornam-se reconhecíveis por rápidos momentos, antes de serem novamente engolidas pelo vazio. Então, atravessando os últimos vapores de neblina, nosso destino revela-se por inteiro diante de nós. Fazemos novamente parte do tempo e do espaço. Minutos depois estamos novamente presos ao solo, como todos os mortais.

Até o próximo vôo.

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Acompanhe:
Incríveis histórias medíocres de montanha – a série
1. Apresentação
2. O menino de asas
3. Queda livre

4. Às vezes falha
5. O Raio que o parta
6. Sopão
7. Cadê o caroço
8. Do piso ao teto
9. A chave da terra de Malboro
10. Meia lua inteira
11. Gênesis
12. Macacos me mordam
13. O Eterno

20 de novembro de 2008

Questão didática [3]

Mateus 23, 24, 25.

3. Só existe um quando

> Quando acontecerão essas coisas? (Mt 24.3)

O ponto central abordado por Jesus em resposta ao "quando?" dos discípulos foi direcioná-los a olhar para o que estavam fazendo "aqui e agora". O Cristo tinha o irritante e rabínico hábito de responder uma pergunta com outra. A ele parecia que a pior maneira de esclarecer uma dúvida seria respondê-la objetivamente. Se seus seguidores querem saber o "quando", ele aponta para Noé e afirma que a única coisa que importa é construir a bendita arca. Diz que temos que cuidar da casa (e dos da casa), porque o ladrão chega sem avisar e o patrão costuma pegar o funcionário desprevenido. Não importa às virgens quando o noivo vem - isso é com ele. A elas importa preparar a candeia. Não importa aos trabalhadores daquela empresa simplesmente manter as coisas funcionando e evitar qualquer perda. O que interessa é trabalhar corajosamente pelo bem do negócio.

Só existe um quando e seu nome é hoje. Se vocês realmente se preocupam com o "quando", insistia o mestre, dediquem-se, agora, àquilo que realmente importa.

E então nos deparamos com a angustiante pergunta final. O que importa? Que raio significa cuidar da casa, da empresa, do óleo das cadeias?

> Quando o filho do homem vier... (Mt 25.31)

Quando tudo já parecia suficientemente confuso, quando a resposta já estava atordoantemente distante da pergunta, de maneira estranhamente emblemática, no versículo 31 de Mateus 25 Jesus retorna à palavra que iniciou toda sua explanação até aqui.

Quando o Fiho do Homem vier, explica o rabi, vai separar ovelhas e bodes, e às ovelhas dirá: venham benditos de meu pai, porque tive fome, sede, solidão, frio, dor, angústia, sofrimento, e vocês me acolheram, abraçaram, cobriram, envolveram... Então os justos, as ovelhas, perdidos, pegos de supresa pela inesperada redenção, farão a já famosa pergunta: Quando? Mas a questão aqui, amplamente reformulada na metáfora de Jesus, já não se refere mais ao tempo. A questão é radicalmente refeita. Quando foi que fizemos estas coisas? De meros espectadores de um destino sob o comando de um Deus intervencionista, as ovelhas transformaram-se em protagonistas inconscientes da história do Reino que agora lhes é entrege por herança.

"Quando o fizeram a um de meus menores irmãos, a mim o fizeram", são as palavras terríveis do rabi.

A única coisa que interessa no fim das contas é o que estamos fazendo aos pequeninos. É vestindo-os, alimentando-os e amando-os que mantemos nossas candeias com óleo. É visitando-os e combrindo-os que multiplicamos nossos talentos. Quando abriremos os olhos para isso? Quando acontecerão essas coisas? Quando?


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Questão didática:
1. Destruição
2. Interlúdio
3. Só existe um quando

17 de novembro de 2008

Paixão e fé, faca amolada

Vai acontecer aqui nas barrancas do Rio Itajaí Açu.



Conheça o blog.
Se é aqui da região, apareça.
Se puder, divulgue.

14 de novembro de 2008

Caminho de linho

Cada passo deixa uma marca no solo
E me arranca um naco de couro dos pés
Cada passo clama por meu sangue
E sacia-se no suco de meu suor

Mesmo na glória da fina lâmina de água fresca
Lavando os cortes e feridas
Mesmo na suavidade do capim orvalhado
Elevando-me aos céus

Sei que ainda passarei por pedras e brasas
E careço da coragem dos nobres
Para não agarrar-me ao outro caminho
Forrado de linho fino

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Trilha sonora para o post.
"Coragem", canção de Jorge Camargo.
Ouça no blog dele.

11 de novembro de 2008

Contraditória

"A Bíblia é tão narrativa quanto à vida. E tão desorganizada, imprevisível, imprecisa, surpreendente e contraditória quanto a vida de qualquer um de nós."

"Ninguém aprende a jogar a partir de uma manual de regras, mas a partir do jogo mesmo. Porque um jogo é muito mais que as regras de seu funcionamento. É intuição. Discernimento. Interpretação. Improviso. Imaginação. Só então as regras do jogo fazem algum sentido."

Por Elienai Jr.
Confira o texto completo aqui.


Veja também:
Reticências...

6 de novembro de 2008

Nada de nada


Do belíssimo filme "Piaf - Um hino de amor"


Não, nada de nada
Não, não me arrependo de nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, é-me tudo igual

Não, nada de nada
Não, não me arrependo de nada
Está tudo pago, apagado, esquecido
Não me importa o passado

Com minhas recordações
Acendi o fogo
Minhas mágoas, meus prazeres
Já não preciso deles

Apagados os amores
E todos os tremores
Apagados pra sempre
Recomeço do zero

Não, nada de nada
Não, não me arrependo de nada
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, é-me tudo igual

Não, nada de nada
Não, não me arrependo de nada
Seja a minha vida
Sejam as minhas alegrias
Hoje começam contigo

3 de novembro de 2008

Sobre a crise

(...) As “leis do mercado” conduziram a uma situação caótica que levou a um “resgate” de milhares de milhões de dólares, de tal modo que, como se referiu acertadamente, “se privatizaram os ganhos e se nacionalizaram as perdas”. Encontraram ajuda para os culpados e não para as vítimas. Esta é uma ocasião única para redefinir o sistema económico mundial a favor da justiça social.

Não havia dinheiro para os fundos de combate à SIDA, nem de apoio para a alimentação no mundo… e afinal, num autêntico turbilhão financeiro, acontece que havia fundos para que não se arruinassem aqueles mesmos que, favorecendo excessivamente as bolhas informáticas e imobiliárias, arruinaram o edifício económico mundial da “globalização”. (...)

Do Blog do José Saramago (sim! ele tem um blog)
Veja o texto na ítegra aqui.