27 de fevereiro de 2007

O Grande Inquisidor [parte II]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte II]

No meio da turbamulta há agitação, grita-se, chora-se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor. É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta-o com o dedo e ordena aos guardas que o prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam e levam-no. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho. O prisioneiro é conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde o encerram numa estreita cela abobadada. O dia chega ao fim, vem a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está embalsamado do perfume de loureiros e limoeiros. Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Pára no limiar e observa longamente a Santa Face. Por fim, aproxima-se, pousa o facho sobre a mesa e diz-lhe:

— És tu, és tu? — Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vieste estorvar-nos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes disso? Talvez — acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em seu prisioneiro.

***

— Não compreendo bem o que quer isto dizer, Ivã — observou Aliócha, que escutara em silêncio. — É uma fantasia, um erro do ancião, um qüiproquó estranho?

— Admite esta última suposição — disse Ivã, rindo — se o realismo moderno te tornou a este ponto refratário ao sobrenatural. Seja como quiseres. É verdade que o meu inquisidor tem noventa anos e sua idéia pode ter-lhe desde muito tempo transtornado o espírito. Afinal, é talvez um simples delírio, o devaneio de um velho antes de seu fim, com a imaginação esquentada pelo recente auto de fé. Mas, qüiproquó ou fantasia, que nos importa? O que é preciso somente notar é que o inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que calou durante toda a sua carreira.

— E o prisioneiro não diz nada? Contenta-se com olhá-lo?

— Com efeito. Só pode calar-se. O próprio ancião faz-lhe observar que não tem ele o direito de acrescentar uma palavra às suas antigas palavras. É talvez o traço fundamental do catolicismo romano, na minha humilde opinião: "Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo depende pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo menos". Tal é a doutrina deles, dos jesuítas, em todo caso. Encontrei-a nos seus teólogos.

[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
O Grande Inquisidor - parte 3
O Grande Inquisidor - parte 4
O Grande Inquisidor - parte 5
O Grande Inquisidor - parte 6
O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

25 de fevereiro de 2007

Brasil, emaña yvate

Um coralzinho de índios Caiuás chamado Mitã Rory, cantando a impactante música do João Alexandre Silveira, Pra cima Brasil.

Como será o futuro do nosso país?
Surge a pergunta no olhar e na alma do povo
Cada vez mais cresce a fome nas ruas, nos morros
Cada vez menos dinheiro pra sobreviver

Onde andará a justiça outrora perdida?
Some a resposta na voz e na vez de quem manda
Homens com tanto poder e nenhum coração
Gente que compra e que vende a moral da nação

Brasil olha pra cima
Existe uma chance de ser novamente feliz
Brasil há uma esperança!
Volta teus olhos pra Deus, justo juiz!

João Alexandre

Na voz desse povo marginalizado, maltratado e esquecido, a letra se torna ainda mais marcante.

Pra cima Brasil.mp3

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Veja também:

MISSÃO CAIUÁ

1.
Chegada
2. Campo (de futebol) missionário
3. Olhares desconfiados
4. A palestra de domingo
5. Finalmente, janela aberta
6. Uma índia assassinada
7. Coragem
8. Uns semeiam, outros regam...
9. Velório, protesto e Eric Clapton
10. Gincana, oficina, esporte e muita história
11. Gratidão
12. Alegria e lágrimas
13. Brasil, emaña yvate

Missão - alegria e lágrimas

Quando pensamos em Missão, o primeiro texto que vem à mente da esmagadora maioria é, certamente, Mateus 28.19, 20.

Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém.
Essas foram as palavras finais de Jesus, antes de deixar seus discípulos. Certamente foram palavras de grande importância, como quando um pai, antes de viajar, chama seu filho para dar alguns conselhos. Ele quer estar certo de que o filho vai saber como se comportar na sua ausência. Não é a toa que o texto foi apelidado de “a grande comissão”.

A dificuldade, no entanto, está em definir os termos que Jesus usou. Afinal, o que é ‘fazer discípulos’? Parece que resumimos essa ‘comissão’ à levar alguém para a igreja (como se a igreja fosse um lugar) para que lá ele seja doutrinado e passe a ter o padrão de comportamento que chamamos de ‘evangélico’. E quando lemos o versículo 20, temos a impressão que a coisa toda se confirma. Afinal, na ‘igreja’ vão ensinar nosso ‘discípulo’ direitinho a obedecer as regras. Mas aí vem a segunda pergunta. O que é mesmo que Jesus ordenou?

Creio que nossa missão está muito mais bem descrita no texto de Lucas 10.25 – 37.
E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? E ele lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. E disse-lhe: Respondeste bem; faze isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo? E, respondendo Jesus, disse:
Toda a argumentação de Jesus daí pra frente é a resposta a uma pergunta clara do seu inquisitor - como alcançar a vida eterna? É certo que nós entendemos que o texto de Mateus 28 está diretamente relacionado com a ‘vida eterna’. O assunto, então, é o mesmo de Lucas 10.

O próprio mestre da lei dá uma bela resposta à questão. E Jesus concorda com ele. Mas essa resposta é muito vaga. Como é que isso se manifesta na prática? Essa é a pergunta que realmente interessa ali. E é nesse ponto que Jesus começa a contar sua história.
Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira.
Ele começa narrando a condição do homem. Como se encontra aquele a quem o Evangelho quer alcançar. Como se encontra o povo Caiuá (e, certamente, nós caraís também, do nosso modo). Na beira da estrada, caído, surrado, roubado, abandonado. (v 30)

Em seguida, descreve aquela que é, miseravelmente, a minha condição. Como eu me porto diante de um possível discípulo de Jesus. Passo por ele ou, quando muito, paro rapidamente ao seu lado, entrego um belo folheto e digo: Jesus te ama! Afinal, não tenho tempo à perder com ele. Meus objetivos são outros. São maiores. Família, trabalho, lazer, descanso, igreja. (v 31 e 32)

Mas finalmente aparece alguém que não tem tantos compromissos. Alguém disposto a abrir mão de algumas de suas ocupações, de suas responsabilidades. Alguém disposto a ‘perder tempo’. Alguém com coragem de correr o risco, de pagar o preço, de sujar as mãos. Ele trata o ferido, como Jesus tratou seus discípulos. Ele não se preocupa com o mundo e todas as suas exigências, porque entende que aquele homem vale mais que o mundo. Ele não pensa em números, porque sabe que um vale mais que uma multidão (Lc 15.6-7). Esse homem não era um filantropo profissional. Não era um missionário, um assistente social. Ele tinha objetivos, projetos. Estava caminhando na estrada como os outros, tinha um destino, um lugar pra ir, um compromisso. Mas estava sensível ao que acontecia à sua volta. E disposto a parar.

Vai e faze da mesma maneira.

A grande comissão é, portanto, a comissão do serviço, da auto-doação, de relacionamentos, de vidas que se encontram no caminho e se amparam, se cuidam, o mais forte carregando o mais fraco, e se saram.

O que Jesus quer de nós é que, aos poucos, essa comissão vá tomando lugar em nossas mentes, corações, vidas, dia-a-dia. Porque nós passamos constantemente ao lado de vidas caídas pela estrada, mas nem sequer os vemos. E quantas vezes nós mesmos caímos e vemos tantos conhecidos passando de lado. Mas se nossas mentes e corações forem se abrindo para essa comissão verdadeira, ele vai abrir nossos olhos. E então dependerá de nós optarmos por parar, estender a mão e fazer discípulos.

Esses 10 dias com os índios deixaram marcas profundas. E o que peço a Deus é que essas marcas permaneçam. Mais do que isso. Que elas cresçam, inflamem, doam. Porque somente com essa dor é que vou ter coragem e compaixão suficientes para parar à beira do caminho.

E se alguém estiver questionando onde está, no meio dessa dor, a alegria daquele que serve à Cristo, vale lembrar que Cristo chamou de felizes aqueles que choram. A alegria verdadeira parece estar bem mais próxima da dor do que do conforto. A vida em abundância que nos é oferecida por Jesus, só pode acontecer em meio às lágrimas.

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1.
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22 de fevereiro de 2007

O Grande Inquisidor [parte I]

DE FIODOR DOSTOIEVSKI, EM OS IRMÃOS KARAMÁZOVI [parte I]

...
Quinze séculos decorreram, desde que ele prometeu voltar ao seu reino, depois que seu profeta escreveu: "Voltarei em breve. Quanto ao dia e à hora, o próprio Filho não os conhece, mas somente meu Pai que está no céu", segundo suas próprias palavras na terra. E a humanidade o espera com a mesma fé de outrora, uma fé mais ardente ainda, porque quinze séculos se passaram desde que o céu deixou de dar testemunhos ao homem.

Daquilo que o coração diz
O céu não dá testemunho.

E só resta a fé no referido coração. É verdade que numerosos milagres se verificavam então; santos realizavam curas maravilhosas. A Rainha dos Céus visitava certos justos, de acordo com a biografia deles. Mas o diabo não dorme; a humanidade começou a duvidar da autenticidade daqueles milagres. Naquele momento nascia na Alemanha uma terrível heresia que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardente como um facho, caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas."* A fé dos fiéis só fez redobrar. As lágrimas da humanidade elevam-se para ele como outrora, aguardam-no, amam-no, espera-se nele como antes... Depois de tantos séculos, a humanidade reza com fervor: "Senhor Deus, dignai-vos aparecer-nos", depois de tantos séculos grita ela para ele, ele que quis na sua misericórdia infinita, descer entre seus fiéis. Outrora, já havia visitado justos, mártires, santos anacoretas, como o narram suas biografias.

Entre nós, Tiútchev, que acreditava profundamente na verdade de suas palavras, proclamou que:

Sob o peso da cruz, esmagador,
O Rei dos Céus, de servo disfarçado,
Toda te percorreu, terra natal,
O solo teu inteiro abençoando.

Mas eis que quis ele mostrar-se por um instante pelo menos ao povo sofredor e miserável, ao povo que se arrastava no pecado, mas que o ama ingenuamente. A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias no país ardiam as fogueiras à glória de Deus e

Em esplêndidos autos de fé
Queimavam-se horríveis heréticos

Oh! não foi assim que ele prometeu voltar no fim dos tempos, em toda a sua glória celeste, subitamente, "como um relâmpago que brilha do Oriente ao Ocidente". Não, quis visitar seus filhos, no lugar onde crepitavam precisamente as fogueiras dos heréticos. Na sua misericórdia infinita, volta ao convívio dos homens sob a forma que tivera durante os três anos de sua vida pública. Ei-lo que desce para as ruas ardentes da cidade meridional, onde, justamente na véspera, na presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, o grande inquisidor mandara queimar uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei.** Apareceu docemente, sem se fazer notar, e — coisa estranha — todos o reconheciam. Seria uma das mais belas passagens de meu poema explicar a razão disso. Atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à sua passagem e segue-lhe os passos. Silencioso, passa ele por entre a multidão com um sorriso de compaixão infinita. Seu coração está abrasado de amor, seus olhos desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e despertam o amor nos corações. Estende-lhes os braços, abençoa-os, uma virtude salutar emana de seu contato e até mesmo de suas vestes. Um velho, cego de infância, exclama em meio da multidão: "Senhor, cura-me e eu te verei". Uma casca cai de seus olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão sobre as marcas de seus passos. As crianças lançam flores à sua passagem, canta-se, grita-se: "Hosana!" "É ele, deve ser ele!", exclama-se. "Só pode ser ele!" Ele pára no adro da Catedral de Sevilha no momento em que trazem um pequeno ataúde branco no qual repousa uma menina de sete anos, a filha única de uma pessoa notável. A morta está coberta de flores. "Ele ressuscitará tua filha", gritam na multidão para a mãe lacrimosa. O padre, que sai a receber o ataúde, olha com ar perplexo e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança aos seus pés: "Se és tu, ressuscita minha filha!", e estende os braços para ele. O cortejo pára, deposita-se o caixão sobre as lajes. Ele a contempla, cheio de compaixão, e sua boca ordena docemente mais uma vez: "Talitha kumi,*** e a menina se levantou". A morta se levanta, senta-se e olha em redor de si, sorridente, com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas brancas que haviam depositado no caixão.

* Do Apocalipse, de São João
** "Para a maior glória de Deus." Mote dos jesuítas.
*** “Jovem, levanta-te." São Lucas, C. VII, v. 14. Palavras da linguagem aramaica, pronunciadas por Jesus Cristo quando da ressurreição do filho da viúva de Nain.


[continua]

Veja também:
O Grande Inquisidor - parte 1
O Grande Inquisidor - parte 2
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O Grande Inquisidor - parte 7
O Grande Inquisidor - parte 8

20 de fevereiro de 2007

Caixa Econômica

Estava hoje cedo no computador, preparando um texto para uma palestra, ainda sobre minha marcante viagem entre os índios Caiuás, quando ouvi meus filhos ao fundo:

- Vamos brincar de Caixa Econômica? - sugeriu o Caio (7 anos) - Eu sou o caixa!
- Tá bom - concordou a Ana (4 anos) - eu sou a econômica!

18 de fevereiro de 2007

Comunidade hermenêutica

Os Evangelhos e as cartas que compões o Novo Testamento nos dão poucas referências a respeito da forma como devemos interpretar a palavra de Deus. Parece que houve pouca preocupação no início da igreja sobre como interpretar a palavra, até porque o novo testamento estava sendo vivido e não estudado. Obviamente somos gratos à formação do cânon e a inacreditável sobrevivência do texto que hoje é a base da nossa fé. No entanto, esse texto único levou a igreja a caminhos diversos. E cada um desses caminhos é resultado de contextualizações a culturas e momentos históricos.

Dentro das muitas variantes, podemos encontrar 3 modelos hermenêuticos principais.

O modelo adotado pelo protestantismo histórico, com seu valor à ortodoxia, à compreensão dos textos, à doutrina correta, nos conduz a uma interpretação plana da Bíblia. Antigo e novo testamento tem mesmo valor, e Cristo é visto como o salvador, que pode nos capacitar a cumprir a “ortodoxia”. Nossa salvação é um evento que acontece num determinado momento, e garante nossa eternidade com Deus. Esse modelo tende a gerar cristão mais dispostos a se debruçar sobre a Bíblia do que a estender a mão ao próximo. O esforço é direcionado para defender a doutrina ao invés de atender aos necessitados. A evangelização se resume a ver a mão erguida, o apelo aceito e o céu garantido. Daí pra frente, basta entender a doutrina e aceitá-la como correta.

O segundo modelo - o movimento que mais cresce no Brasil – é o carismático. Sua hermenêutica valoriza a revelação direta de Deus a uma pessoa, que assume o título de profeta ou apóstolo, e que tem voz de comando sobre seus seguidores. É, de longe, a forma com maior potencial para deturpações do Evangelho. E essas deturpações têm sido cada vez mais comuns e mais óbvias.

A terceira opção pode ser chamada de comunitária. Esse grupo entende a Bíblia como uma revelação progressiva de Deus. Do velho para o novo testamento, a revelação dá o grande salto da lei (morta) para a vida (relacionamento). A ênfase passa a ser prática, relacional. E o modelo de relacionamento é Cristo, que assume o papel de Senhor, que espera obediência, sendo seguido e imitado. Aqui a salvação parece não ser um evento tão pontual, claro e irrevogável. Antes, ela é fruto da caminhada com Cristo, como discípulo. A dificuldade aqui, reside na tendência da comunidade gastar seu tempo gerindo a si mesma. Parece que os esforços acabam se direcionando para manter a comunidade imune, guardá-la do mal. O resultado tende muito mais para o protecionismo do que para a dispersão a que Cristo nos comissionou. O pensamento se torna homogêneo demais, os pequenos problemas criam raízes e se tornam difíceis de arrancar.

O modelo que o Evangelho propõe é essencialmente relacional. A hermenêutica comunitária propõe abraçar esse modelo. No entanto, temos que entender que a comunidade não deve viver para si, nem restringir-se ao grupo de discípulos de Cristo. O Evangelho deve ser vivido para fora, misturado aos que não o conhecem, transformado em ações práticas de amor, misericórdia e perdão, para os que carecem disso. A interpretação da palavra deve nos levar a entender o Espírito de Cristo, e a viver de acordo com ele, entre aqueles que não o conhecem. Uma comunidade hermenêutica diluída, misturada, adoece menos. E uma comunidade menos adoecida, pode viver mais intensamente o conteúdo revolucionário da proposta de Jesus, sem perder tempo tratando de si mesma.

13 de fevereiro de 2007

Missão Caiuá - gratidão

DA SÉRIE CAIUÁS

Esses 10 dias foram um grande presente para mim. Sou imensamente grato pelas pessoas que conheci na aldeia. A cultura, a língua, o sofrimento, os sorrisos de cada um colaboraram pra marcar minha vida de forma, assim espero, permanente.

Quero deixar um grandioso abraço nos anfitriões Gervásio e Eulália, e no Zebedeu, Marta, Eliéser, Andrieli e a bebê. Todos gente boa da melhor qualidade. Todos usados por Deus no meio daquela tribo tão carente de tudo que nós temos de sobra. Todos servos fiéis, que entenderam que o melhor que podem oferecer é suas vidas, e a oferecem diariamente.






E um caloroso abraço no Evaldo e na Astrid, que coordenaram tudo com muito suor, empenho, carinho e sabedoria. Que Deus os abençoe lá em Joinville.


Um agradecimento especial pra cada um que compartilhou esses dias comigo.

Sandra - Companheira da minha vida. Nesses 10 dias estivemos como na época em que éramos apenas grandes amigos. E percebi que todos os detalhes que me fizeram amá-la e querer tê-la como minha esposa, permanecem lá. Coisa linda.

Evaldo e Astrid - Coordenaram tudo com muita sabedoria, ânimo e carinho. Aprendi a amá-los do fundo do meu coração.

Gervásio e Eulália - Exemplo de maturidade, amor, dedicação, humildade, simpatia. Só de olhar pra cara deles já dá vontade de dar um abraço.

Zebedeu, Marta e filhos - Muito legal ver neles seriedade com o Evangelho e compromisso com seu povo. E os filhos são uns figuras. E ainda fornecem um tererê de primeira. Uma família especial.

Jonas - Esteve todos os dias com a gente no Cerro, traduzindo tudo pro Caiuá. Logo no domingo me deu uma injeção de ânimo com seu testemunho. Fiquei com vontade de dar um abração apertado nele, mas não dei por constrangimento. Mancada. Quando terei outra oportunidade?

Cláudia - Esforço e empolgação contagiantes.

Cristiane - Muito legal as histórias que contou e as coisas que ensinou.

Diogo - Não conhecia mas pareceu que crescemos juntos. Guri querido. A Rússia o aguarda.

Ester, Lídia e Sara - Um dia quero ver meus filhos assim, como elas, juntos, servindo a Deus.

Fernanda - Sobe em árvore! Isso é uma grande qualidade, no meu ponto de vista.

Isilda - Amor, dedicação, serviço de dar inveja (inveja santa).

Israel - Empolgação, ânimo e alegria contagiantes. Sempre disposto.

Jonatas - Prova do poder de transformação da graça de Deus. Gente boa da melhor qualidade.

Karina - Figuraça! Não fazia idéia de que ela era assim tão divertida. E sincera, e simples, e querida. E ela é quase minha vizinha!

Leomar - O cara é um barato! Gostei demais de conviver com ele. Espero que devolva minha lanterna.

Rosana - Sincera e disposta a aprender e crescer, de coração e cabeça aberta.

Sheila - Exemplo de dedicação e responsabilidade. Ficou de madrugada consertando aquela árvore que eu e o Diogo fizemos mal e porcamente. E vai ser quase minha vizinha também.

Toninho - Servo fiel, humilde e divertido. E garanto que nunca vou mexer com a nêga dele.

Uíhra (será que é assim que escreve?) - Guri bacana. Dorme como ninguém, mas quanto está acordado é um desses sempre disposto a ajudar.

Wagner - Mal sabe ele o quanto foi usado por Deus na minha vida. Valeu guri.

E ainda a turma de adolescentes caiuás que esteve com a gente, dando a maior força.

Um abração pra todos.

Nhandejara ta pe n´de rovassá.
(Deus os abençoe).

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9 de fevereiro de 2007

A igreja, o holocausto e o planeta azul

Um dos mais trágicos períodos da história recente é o protagonizado pelo nazismo alemão antes e durante a segunda guerra mundial. Talvez o conturbado momento político e social que a Alemanha vivia, desde a primeira guerra, tenha favorecido o fortalecimento da ideologia que originou o nazismo de Hitler. Talvez a sagacidade com que essa ideologia foi transmitida, através de recursos revolucionários de propaganda e marketing, tenha colaborado para a adesão maciça da população, ao tão desumano tratamento que o nazismo deu àqueles que ele mesmo considerou indesejáveis. Mas o fato inegável é que essa adesão contou com a participação da igreja cristã alemã.

Olhando de longe não é difícil pensar – como isso pode acontecer? Onde essa gente estava com a cabeça (e o coração, e a alma)?

O teólogo e historiador cubano Justo L. Gonzalez, em entrevista à revista Ultimato, diz que “quanto mais perto estamos dos acontecimentos, mais difícil é medir sua importância”. Como saberíamos que habitamos um planeta azul, se não o tivéssemos visto do espaço? Como discernir o todo que nos cerca, se fazemos parte dele?

A igreja alemã conviveu com o holocausto ao menos de três formas. Ativamente [1], quando cooperou com o partido nazista e creu cegamente da “supremacia ariana”, estando certamente representada entre militares ou mesmo cidadãos que agrediram, seja física ou moralmente, os indesejáveis (judeus na sua grande maioria). Passivamente [2], quando observou consternadamente de longe a ação cruel e desumana dos compatriotas. Profeticamente [3], levantando corajosamente sua voz contra os horrores da guerra, como no caso do martirizado Dietrich Bonhoeffer.

O que salta aos olhos e arrepia os cabelos é a clara discrepância numérica entre os adeptos dos grupos 1, 2 e 3. Se a Alemanha era um país cristão, fica evidente, pelo comportamento da sociedade à época, que o grupo mais numeroso foi o primeiro. A adesão às idéias nazistas foi maciça. Talvez um pequeno grupo permaneceu observando atônito o rumo dos acontecimentos. Mas nadar contra a corrente seria penoso demais. O segundo grupo se calou. Os que ousaram abrir a boca, honrosos remanescentes, enlouquecidos pela cruz de Cristo, pagaram um alto preço. O terceiro grupo, quase se poderia contar nos dedos.

Seria um alívio constatar que isso já passou. Faz parte da história e não deve ser repetido. No entanto, como saber se não estamos embarcando na mesma nau? Se não estamos entorpecidos pelos acontecimentos, cegados pelo espírito do nosso tempo?

Vivemos em uma sociedade injusta, cruel, discriminatória. A realidade social, política e ideológica dos nossos dias atua de forma semelhante à da Alemanha nazista. Os guetos das grandes cidades são hoje chamados de favelas, ou mesmo nossas próprias casas gradeadas. A desconfiança racial e religiosa mantém a Europa de hoje em clima de constante tensão. Olhares de europeus e imigrantes se cruzam receosos. As ideologias norte-americanas (entre elas a globalização compulsória a que somos submetidos, que favorece os fortes e sufoca os fracos) utilizam-se das mais modernas e poderosas estratégias de marketing e propaganda, e arrebatam a grande massa da população mundial às suas convicções. E os que são contrários, são inimigos, conforme declaração deliberada do comandante supremo daquela nação.

E segue a igreja hoje, como ontem, dividida.

Há os que participam ativamente dessa sociedade cruel, embriagados pelo crescimento numérico, pelo controle de vidas e pela crescente influência política. Esses mantêm as portas do templo abertas aos pobres e aos fracos, não para tratá-los com amor e generosidade, mas para prendê-los em correntes e promessas de vitória e prosperidade, e sugá-los, e usá-los como cruel demonstração de poder e controle, enquanto constroem suntuosos templos, elefantes brancos, castelos para abrigar seus majestosos egos entorpecidos.

Há os que prosseguem silenciosos, vivendo vidas de impecável comportamento moral e ético, cumpridores fiéis dos preceitos divinos, senhores de respeito. Esses olham com horror às loucuras do primeiro grupo, mas passam de lado dos habitantes dos guetos. Murmuram palavras de desgosto àqueles que se aproveitam da fé alheia e enaltecem sua nobre posição, mas passam de lado dos excluídos e marginalizados. Vivem em uma sociedade à parte. E permanecem em silêncio e inertes.

Mas há de haver, ainda, alguns dispostos a seguir o estreito caminho que foi trilhado por Jesus. Caminho não repetido senão por uns poucos desafortunados aqui e ali, nesses dois mil anos de história. Para seguir esse caminho é preciso olhar de fora e discernir os fatos que nos cercam.

Para podermos levantar a voz e nadar contra a corrente, ainda que isso custe o preço que custou àquele que abriu a trilha, temos que saber a cor do planeta em que vivemos.

8 de fevereiro de 2007

Missão Caiuá - gincana, oficina, esporte e muita história

DA SÉRIE CAIUÁS
Sábado

Amanheci na corrida pra preparar a gincana da manhã. A programação começou com um café da manhã pros índios. Depois uma história sobre o “médico da floresta”. Durante esse tempo preparei as 5 etapas da gincana com ajuda da rapaziada da equipe. Dividimos os índios em 5 equipes e todo correu espantosamente bem.


Da gincana fomos pro almoço, depois mais uma história, e as oficinas. Das 4 que preparamos, restaram 3. Uma foi cancelada por total desinteresse dos índio. Sobraram oficina de miçangas (pulserinhas e badulaques), desenho (com o excelente desenhista e figura rara Diogo, de Curitiba), e pantomima.


Depois das oficinas, lanche e história. Fechando com um almoção caprichado.

Mais uma vez tudo correu muito melhor do que o esperado, pela misericórdia de Deus, e apesar de nós.

À noite nos reunimos novamente pra conversar sobre a semana, desta vez com a honrosa presença do Gervásio e da Eulália. Muitas conversar, sempre com muita gratidão à Deus, por tudo que passamos nesses dias lá. O Gervásio nos contou a história deles, de como foram parar lá. É um casal querido demais. O clima da conversa foi delicioso.

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MISSÃO CAIUÁ

1.
Chegada
2. Campo (de futebol) missionário
3. Olhares desconfiados
4. A palestra de domingo
5. Finalmente, janela aberta
6. Uma índia assassinada
7. Coragem
8. Uns semeiam, outros regam...
9. Velório, protesto e Eric Clapton
10. Gincana, oficina, esporte e muita história
11. Gratidão
12. Alegria e lágrimas
13. Brasil, emaña yvate

6 de fevereiro de 2007

Obediencia e liberdade

A contrapartida do poder é a obediência.
A contrapartida do amor é a liberdade.

Jung Mo Sung, retirado do provocante blog de Ed René Kivitz.

Missão Caiuá - velório, protesto e Eric Clapton

DA SÉRIE CAIUÁS
Sexta

Sexta foi nosso dia de folga. A semana foi puxada. Dormimos um pouco mais (até às 8h) e passamos a manhã na sede da Missão, arrumando algumas coisas e batendo papo. À tarde saímos com o Gervásio para o velório da mulher assassinada na terça. Os índios exigiam enterrar o corpo na fazenda onde ela foi morta, mas o fazendeiro não permitia. O negócio foi parar na justiça e os índios bloquearam a estrada até a resposta final. Nesse período o caixão ficaria sendo velado. Já haviam passado 4 dias, e o caixão exalava um odor terrível. O líquido da decomposição do corpo escorria pelo canto do caixão e deixava uma mancha fétida no chão, infestada de moscas. Nauseados, conversamos e oramos com o irmã da defunta.



Depois fomos até a barreira na estrada. Observamos o movimento de longe. Alguns tinham paus e pedras nas mãos, um carregava arco e flecha e alguns feiticeiros vestidos à caráter estavam no local. Graças a Deus o Gervásio é muito respeitado entre eles e acabamos bem recebidos. Alguns do nosso grupo brincaram com o arco e flecha enquanto a Sandra e eu conversamos com o capitão (cacique) Marino. Ele nos falou da dificuldade de manter as fronteiras da Aldeia, alegando que os fazendeiros lentamente invadem áreas da reserva. E confirmou que os maiores problemas entre eles são originados por bebida e drogas. Muitos índios são também usados como mulas para passar drogas do Paraguai para o Brasil. Além disso, é altíssima a taxa de mortalidade infantil entre eles (27%). Uma das principais causas dessa mortalidade é o descuido das famílias. O governos dá auxílio financeiro para cada nascimento, e um salário durante os 6 primeiros meses de vida do bebê. Esse é, muitas vezes, o único sustento da família. Depois desse prazo, acontecem casos de abandono de bebês, que morrem sozinhos no meio do mato.

Nos reunimos à noite, numa roda de bate-papo, para conversar sobre tudo que vivemos durante a semana. Foi uma delícia. Momento de comunhão profunda, adoração genuína, com o violão do Israel tocando Eric Clapton ao fundo (os mais santos que nos perdoem). Muita emoção, risada e choro.

O sábado promete muita correria, com uma programação intensa de histórias, jogos e brincadeiras pros mita-kwera e adolescentes. Das 8h às 20h, direto. Terminamos de preparar as coisas para o sábado somente de madrugada.

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Veja também:

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10. Gincana, oficina, esporte e muita história
11. Gratidão
12. Alegria e lágrimas
13. Brasil, emaña yvate

5 de fevereiro de 2007

Missão Caiuá - uns semeiam, outros regam...

DA SÉRIE CAIUÁS
Quinta

O último dia com as crianças do Cerro foi diferente. Os brinquedos do dia anterior animaram a criançada (pe mita-qwera). Compareceram cerca de 115 crianças e algumas mães. Para nosso grupo foi muito mais complicado. Mas graças a Deus tudo correu tranquilamente. Os indiozinhos são muito comportados. Se juntássemos 115 crianças caraís numa salinha daquelas do Cerro, seria impossível contar uma história. E haviam muitos bebês ali. A maioria levando no colo e cuidado durante toda manhã por um irmão maior, às vezes com 5 ou 6 anos. Imagine entre nós, uma criança de 5 anos saindo sozinha de casa, 7h30 da manhã, com seu irmão de 1 ano no colo, pra retornar somente ao meio-dia! Pois é assim entre eles. Os bebês não usam fralda, o que acaba ocasionando vazamentos freqüentes. Assim ficam ambos molhados, durante boa parte da manhã.

Pelo grande e inesperado número de crianças, tivemos que repartir os lanches ao meio. Isso cortava o coração. Eles saem de casa de barriga vazia e sei lá se terão algo para o almoço. A sala ficou pequena e muito quente. Levamos equipamento para projetas as fotos que tiramos nos dias anteriores na parede. Os olhos da criançada brilhavam. Sorrisos e risadas inundaram o local.

A última parte da historinha que estava contando aconteceu debaixo de uma grande árvore, ao ar livre, com as crianças sentadas no capim. Achei aquilo lindo, além de evidentemente mais fresco que dentro da sala. No final da história fiz um apelo desses bem tradicionais. Ali no Cerro poucos conhecem o Evangelho. A criançada (e algumas mães) aceitaram em massa. Já considerei isso motivos de festa pelo dever cumprido e as “almas ganhas”. Hoje sei que é um grande motivo de oração. Uma semente caiu por ali. Enfatizei bastante a importância deles conhecerem Jesus de verdade, suas histórias, sua vida, o que ele fez e ensinou, e que um amigo de Jesus é alguém que tenta imitá-lo. Minha oração é que o tempo que passamos juntos contando histórias, cantando e brincando, seja uma semente de amor que o pessoal da Missão possa seguir regando. E que isso transforme as vidas e dê pra eles um pouco mais de esperança no futuro.



À tarde fui pra região de Taquara. Caminhamos bastante até chegar em uma casinha isolada. A família ali nunca tinha ouvido falar nada sobre o Filho de Deus. Foi muito interessante conversar com eles sobre o amor de Nhandedjara. Eles ganharam também um novo-testamento Caiuá.

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3. Olhares desconfiados
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7. Coragem
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10. Gincana, oficina, esporte e muita história
11. Gratidão
12. Alegria e lágrimas
13. Brasil, emaña yvate

1 de fevereiro de 2007

Travessia montana

Araçatuba x Crista

Clique aqui para ver todas as fotos

Conseguimos uma carona com meu cunhado. Partimos de madrugada em direção ao povoado de Matulão, em Tijucas do Sul. Subiríamos a montanha conhecida como Araçatuba e de lá caminharíamos por 5 dias entre os cumes da serra do Quiriri, até o Monte Crista, em Joinville. Os amigos Fabrício, Rogério e eu. Era agosto e o frio do inverno ainda dominava. O desejo de percorrer aqueles cumes nascera muitos anos antes. Mas somente no ano anterior é que ele passou a estar à caminho da realização, quando o colega GiancarloCover’ realizou a façanha com um amigo.

No início de 2006 tive acesso às cartas topográficas e fotos do Cover. A partir daquele momento o trajeto passou a ser efetivamente planejado. A melhor opção é sempre o inverno. Dois companheiros empolgaram-se com a idéia. Concordamos quanto ao trajeto e data da travessia.

A carona do Ricardo foi providencial. Iniciamos a caminhada às 8h30 da manhã. Caminhávamos lentamente, sentindo o peso da mochila, com mantimentos para 5 dias. Chegamos ao cume do Araçatuba às 11h30. O horizonte estava perfeito. Podíamos ver nosso destino dali a 2 dias. Seguimos em direção ao Baleia, sabendo que entre nós havia um vale profundo.

A maior parte do trajeto dessa travessia acontece em belos campos de altitude, com um visual imenso, horizonte distante e passos rápidos. Cruzaríamos apenas alguns trechos de vegetação densa, nos vales mais profundos entre um cume e outro. O sobe e desce, no entanto, seria certamente extenuante.

Na passada entre Araçatuba e Baleia chegamos à nossa primeira fonte de água. Tocamos ainda até o Moréia, onde passamos a primeira noite. A barraca foi armada no cume. Um belo jantar quente e um maravilhoso por do sol sob denso mar de nuvens foram nossa canção de ninar.

***

O destino do segundo dia era a base do Imbira, logo depois do campo de pinus. Saímos a passos largos, movidos pela empolgação do céu azul, do ar puro e da bela paisagem. Trotamos rapidamente das 8 da manhã às 2 da tarde, com algumas rápidas paradas pra água e uma e outra barra de cereal. Passamos por um belo rio no vale abaixo do Moréia. O tempo extremamente seco facilitou a passagem pelo leito do rio. O volume de água era mínimo. Paramos, às 14h, em frente a um taquaral assustador. Sabíamos, por indicação do Cover, que deveríamos derivar para o oeste, antes de enfrentar as taquaras. A difícil decisão era – quanto mais a oeste?

Próximo das 14h entramos no famigerado taquaral. Lutamos bravamente contra as folhas afiadas que rasgavam nossa pele por intemináveis 5 horas - muito, mas muito mais do que esperávamos. Sabíamos que nossa libertação estava debaixo das copas de pinus, onde não há vegetação nenhuma, no fundo do vale. No auge da nossa batalha contra as pegajosas, cortantes e invencíveis taquaras, em nosso delírio libertário, víamos copas de pinus para todos os lados. Pura ilusão. A noite caiu sobre nós impiedosamente e nos obrigou a render-nos aos inimigos. Fomos agraciados ainda com um pequeno leito de rio, que nos possibilitou reabastecer os cantis e comer algo quente. Deitamos por ali mesmo, em meio às taquaras malditas, e dormimos profundamente.

***

Estávamos atrasados. Mais meia hora de luta contra os bambus e chegamos aos nunca antes tão bem-vistos pinus. É uma região de plantio de árvores da ‘Confloresta’. Durante 4 horas caminhamos por estradas abertas por tratores e caminhões para extração de madeira. É a parte mais feia da travaessia. Presença humana é sempre sinal de destruição. Chegamos na base do Imbira (onde planejávamos ter dormido a noite anterior) perto do meio-dia. Dali víamos perfeitamente o caminho que fizemos pelo taquaral. Um trecho mínimo que, não fosse por aquela vegetação cruel, poderíamos transpor em meia hora.

Traçamos um objetivo corajoso. Avançaríamos incansavelmente até o campo depois do ‘marco da divisa’. Teríamos que passar a noite lá, para compensar o atraso do dia anterior. Daqui pra frente teríamos somente campo de altitude pelo caminho.

Um longo trecho de descida nos levou a um revigorante leito de rio. Cantis cheios, cara lavada, e caminhamos a passos largos, já completamente fatigados, em direção ao marco da divisa. Nossa rota não passa exatamente pelo marco. Deixamos as mochilas no caminho e corremos até a divisa para algumas fotos. A essa altura, caminhar sem mochila é quase como voar. Que delícia. Novamente de mochila nas costas, retomamos o rumo com destino aos campos onde planejamos pernoitar.

Chegamos lá sob a luz da lua cheia, às 19h30. Barraca, jantar, e boa-noite. O Fabrício e o Rogério resolveram dormir ao relento. Eu, por conta da sinusite que estava combatendo à base do antibiótico, achei mais prudente entrar na barraca.

***

O quarto dia seria longo. Teríamos que dormir o mais próximo possível do Crista, para não perdermos o ônibus na BR no quinto dia. Conseguíamos visualizar o Morro da Antena, por onde passaríamos. Seguimos naquela direção. O vento fortíssimo fazia com que o capim parecesse com o mar agitado. Víamos as ondas nos contrafortes dos morros ao redor.

Chegamos ao Antena às 10h. De lá avistávamos, bem abaixo de nós, a ‘Fazenda Quiriri’. Passamos ao lado da sede e subimos mais uma pequena serra. Acompanhamos toda ela pela sua crista, rumo ao leste, até descermos por uma crista transversal ao sul. De um pequeno cume, avistamos finalmente nosso destino final – o Crista.

Empolgado por aquela visão do paraíso, descambamos em direção à Pedra do Urubú, no que seria a última grande subida antes da longa rampa que dá acesso ao Crista. No Urubu, com o Crista quase me chamando pelo nome, fui tomado por uma sensação de êxtase. Durante longos minutos, leve como uma pena por ter abandonado a mochila, louvei a Deus pela beleza da sua criação. Obra divina, sem sobra de dúvida, tudo aquilo.

Novamente com os pés no chão e a mochila nas costas, descemos a deliciosa rampa em 4 horas. Às 19h estamos estarrados no chão plano e aconchegante do crista, logo abaixo do seu imponente ponto culminante.

A empolgação do momento ainda deu gás para um ataque ao cume. À luz de lanternas caminhamos para lá eu e o Fabrício, enquanto o Rogério preparou nosso último jantar. Não conhecíamos a trilha e chegamos apenas a um ante-cume. Mas valeu a pena. A visão das luzes da cidade de Joinville sob a lua cheia era maravilhosa.

A noite estava tão perfeita que a barraca nem saiu da mochila. Sopão delicioso e uma derradeira noite sob o céu estrelado. No dia seguinte estaríamos de volta à civilização.

***

O nascer do sol foi quase inacreditável. Passamos alguns belos momentos da mais pura contemplação, boquiabertos com a beleza do momento. Depois, tratamos de ‘rolar morro abaixo’. A descida do Crista é interminável. Passamos por uma bifurcação perto da base e seguimos o caminho que o instinto indicou. Por vários momentos tivemos a sensação de estarmos no caminho errado. Paramos algumas vezes para conversar sobre a possibilidade de voltar. Mas tocamos em frente, graças a Deus.

Às 11h saímos da densa floresta atlântica que nos encobriu por toda a manhã e nos deparamos com o belo rio que passa no sopé do Crista. Um belo banho e um rápido lanche e estávamos prontos pra encarar a BR.

Mais 4Km de estrada de chão e pronto. Às 12h40 pegamos o ônibus para Joinville, e de lá para Blumenau.

***

O trajeto é espetacular. As paisagens são de tirar o fôlego. Com horizonte bem claro se pode ver todo o litoral do Paraná e boa parte do litoral norte de Santa Catarina. As baías de, Paranaguá, Guaratuba e Babitonga destacam-se ao leste. Forçando os olhos, você consegue perceber a ilha do Cardoso, no sul de São Paulo. A beleza dos campos de altitude não fica para trás. E, evidentemente, a companhia de bons parceiros como o Fabrício e o Rogério fazem todo sofrimento valer a pena.

Todas as fotos da travessia, bem como localização, distâncias e demais informações técnicas estão aqui.