25 de dezembro de 2007

Naquele natal

Eu tinha três anos naquele natal. Faz mais tempo do que minha memória pode alcançar.
Apenas uns pequenos lampejos restaram.
Lembro de minha mãe me negando colo devido ao estado avançado da gravidez. De meu pai me chamando para ver o bebezinho dormindo, de bundinha pro alto.
O tempo correu e milagrosamente nossa diferença de idade foi diminuindo. Logo o nenezinho era meu companheiro de aventuras.
E foram muitas. Do futebol na rua às explorações florestais no ISBIM. Das emoções noturnas em Erechim aos jacarés na praia. Juntos descobrimos as montanhas. E zelamos pela vida um do outro nas maravilhosas paredes de granito.

Dividimos quarto, brinquedos, bicicleta, roupas, barraca, água morna e sanduíches esfarelados.
Juntos passamos frio, cansaço, fome, medo. Também dividimos alegrias, êxtase, vitórias e risos.
Nos sentamos muitas vezes em lugares altos, sentindo a presença de nosso Deus de uma maneira como não sentíamos em templo algum.
Falávamos pouco. Até porque sempre nos entendemos bem, com muito poucas palavras.

Hoje a distância permite que falemos mais. E meu companheiro de aventuras se tornou o companheiro de fé!

No natal de 1973 eu ganhei mais, muito mais que um irmãozinho!
Um abração, meu mano!
Sinto tua falta por aqui!

23 de dezembro de 2007

Anunciação

Um anjo desceu do céu e, mostrando-se àquela jovem, disse-lhe:

- Salve, agraciada; o Senhor é contigo. Eis que conceberás e darás à luz um filho que será chamado filho do Altíssimo.

A jovem, com os olhos arregalados e a boca semi-aberta, permaneceu em absoluto silêncio por alguns segundos que, ao anjo, pareceram uma eternidade. E então, resoluta e confiante, respondeu:

- Por favor, agradeça ao Senhor por mim. Diga-lhe que me sinto verdadeiramente lisonjeada, mas não posso aceitar. Não agora. O problema não é que eu seja virgem. Hoje em dia isso já não é levado em consideração mesmo. A questão é o meu futuro. Minha carreira. Estou terminando a faculdade agora e, com um bebê no colo, jamais conseguirei uma boa colocação no mercado de trabalho. Além disso, estou envolvida com o grupo de jovens e o coral. Estou na escala do louvor e ajudo na equipe de decoração lá da sinagoga. Diga ao Senhor que espere até que eu esteja com uma sólida carreira construída, com a vida estável, com o apartamento pago, um bom carro na garagem e o quarto do bebê decorado. Preciso de pelo menos 15 anos para deixar tudo em ordem. Aí podemos conversar de novo.

Assustado, o anjo ausentou-se dela, e jamais houve natal.

17 de dezembro de 2007

A noiva e o jardim

Em um reino distante havia uma bela noiva, ansiosa por casar-se, mas seu noivo lhe disse que antes das bodas ainda teria que fazer uma longa viagem. Um jardim rude e selvagem cercava a casa do noivo, e ele amava aquele lugar mais que tudo que possuía. Antes de sair para sua difícil jornada, chamou sua noiva, tomou-a pelas mãos e pediu-lhe que cuidasse do jardim até sua volta, e o regasse, podasse, livrasse-o do capim e das ervas daninhas, mantivesse-o vivo, ainda que com o aspecto rude que ele possuía, porque quando retornasse, o próprio noivo trataria do jardim e o tornaria o mais belo de todos os jardins de todos os reinos. Ao final de todas as recomendações, tocou os lábios da noiva com os seus e partiu.

No dia seguinte, a noiva foi até o jardim e dedicou-se a ele como seu noivo havia feito enquanto esteve lá. Mas, com o passar dos dias, percebeu que o jardim lhe roubaria a beleza. Suas mãos começaram a sujar, as unhas lascavam, a pele ressecava ao sol. Sementes de capim aderiam ao seu vestido, espinhos e pedras feriam-lhe mãos e pés. Decidiu poupar-se, temendo que o noivo não a aceitasse mais na sua volta. Entrou na casa rodeada pelo jardim, e tratou de cuidar de si, horas em frente a um espelho, ungindo-se com óleos e perfumes.

No lado de fora, dia após dia, ervas daninhas e capim cresceram e avançaram em direção a casa. Entravam pelas frestas e abraçavam a casa com mil tentáculos, lacrando portas e encobrindo janelas. Logo o sol já não encontrava espaço para iluminar a noiva. A casa se tornou escura e úmida. Mofo e bolor cresciam nos cantos e o ar tornava-se fétido. A noiva, no entanto, permanecia tratando de si, iluminada agora apenas por uma pequena vela, alienada de tudo que acontecia à sua volta. Na penumbra, já não via mais seu próprio rosto, agora pálido, nem as olheiras profundas que se formavam e lhe davam um triste aspecto doentio. Imaginava-se ainda bela e viçosa, enquanto as ervas e o bolor tomavam conta de todo ambiente.

Quando o noivo voltou, encontrou o jardim abandonado e mal podia ver sua casa debaixo de densa vegetação. Do lado de dentro, sua noiva jazia morta, enfraquecida pela escuridão e sufocada pelo bolor. Então, profundamente entristecido, o noivo olhou para o corpo inerte, a casa destruída e o que restara do jardim. Enquanto vagava os olhos úmidos pelo local, encontrou algumas minúsculas flores brancas escondidas entre as ervas e o capim. Seguiu abrindo caminho na vegetação e recolhendo as flores que encontrava espalhadas, invisíveis naquele matagal. Encontrou milhares delas, e as colheu, e juntou-as em um lindo buquê. Amando-as intensamente, tocou-as com seus lábios enquanto, juntas, tornaram-se elas mesmas a mais bela entre todas as mulheres.

Ali mesmo ele a desposou e, em seguida, transformou aquele lugar no mais belo jardim que jamais existiu.

10 de dezembro de 2007

Arborismo Clandestino


Arborismo Clandestino
Upload feito originalmente por Tuco Egg
Era uma tarde quente de domingo quando Gilvan e Arnaldo* entraram clandestinamente na trilha, caminhando como quem observa bromélias, borboletas e colibris. Juntos, imaginavam a melhor forma de vencer a série de obstáculos proibidos que se impunha acima deles, entre cordas e cabos de aço, vários metros acima do solo. Tinham que ser discretos. Não podiam ser vistos. Juntos, já haviam feito muita coisa em tempos idos.

Na juventude, transpuseram montanhas e paredes de rocha. Desceram encostas pendurados em finas cordas como pêndulos regidos pelo vento. Acamparam mantendo-se com sanduíches de presunto amarelado e beberam água de caraguatás. Na infância, venceram exércitos inimigos, monstros, dragões, terroristas, seqüestradores, os mais temíveis vilões e piratas caolhos, tatuados e repletos de cicatrizes. Mas já há alguns anos não caminhavam juntos. O tempo, senhor cruel da história, une e separa quem bem entende, das formas mais inesperadas e absurdas, como não poderíamos jamais compreender – ao menos não enquanto as coisas acontecem. Gilvan sabia disso melhor do que ninguém.

Mas naquele instante não pensavam nisso. Concentravam-se apenas nas cordas, nas amarras, nos degraus, nos troncos pendentes e na amizade que os uniu sempre e que os unia de novo naquele momento. Clandestinos nas copas das árvores, ambos sabiam que o tempo é também senhor gracioso da história e oferece cura aos males que causa.

* Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos infratores.

6 de dezembro de 2007

Naquele instante

Quem entrasse ali, naquele instante, veria somente o corpo curvado e fraco daquela mulher, com seu olhar fixo, perdido em algum ponto do infinito. Veria o rapaz acolhendo em seu peito seus cabelos brancos, acariciando-os, com os olhos cheios d´água. E ouviria, angustiado, o gemido senil que escapava constante e descontrolado da boca semi-aberta daquela mulher. Veria o momento. Tão somente a agonia do momento.

Quem entrasse no quarto, naquele instante, não veria os bolos e confeitos, não sentiria o cheiro vindo do forno ainda quente, nem o sabor das sobras de merengue embrulhadas carinhosamente em pedaços de plástico triangular, com um pequeno furo na ponta. Não tomaria banhos de tacho na varanda, nem veria as migalhas de pão sendo lançadas todos os dias aos passarinhos. Não pensaria nas balas, nos doces, no charuto de repolho ou na sopa de feijão, com aquele caldo cremoso. Não sonharia com os sorrisos, a generosidade graciosa, a simplicidade, o amor e o carinho que transbordaram daquela vida durante 94 anos. Tão pouco lembraria da casinha, nos fundos do casarão. Dos raios de sol batendo na cadeira de balanço, do abraço caloroso oferecido a todos e a qualquer um por aquele lar, sempre de portas abertas, onde viveu aquela mulher. Nem saberia que não houve nunca em lugar algum, lugar tão acolhedor como aquele. E não sentiria o toque carinhoso e incansável dos dedos macios, dançando suavemente sobre suas costas. Não ouviria o canto do relógio cuco, nem as histórias absurdas inventadas por ela e contadas como a mais pura verdade, como sobre o noivo, general morto em combate na guerra do Paraguai. Nem veria o sorriso maroto no fim de cada história mirabolante.

Quem entrasse naquele quarto, naquele instante, veria somente o rapaz acolhendo em seu peito os cabelos brancos daquela mulher, que agora também chorava e o acariciava como antes, esperando ansiosa pela chegada do seu último poente.

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Para a Ica.
Que não teve filhos nem netos.
Mas que foi minha mãe e minha avó.
Em memória.

3 de dezembro de 2007

Uma sexta-feira...

Aqui estou eu.

Cercado por monitores de computador. Segurando uma caneta sem tinta, que escreve com pixels. Na minha frente, elementos tridimensionais brilhantes e reflexivos, que magicamente voam pelo espaço e se agrupam para formar o nome do novo programa de notícias.Aliás, não na minha frente e sim ao meu lado. Porque enquanto a máquina faz sua parte, calculando cada frame da animação, eu me virei para essa outra máquina, um pouco mais humana. Nessa eu leio e envio emails, participo de algumas discussões em fóruns, leio os textos do Tuco, do Brabo e alguns outros (conhecem a página página de cultura do André?). Eventualmente até escrevo alguma coisa aqui na Trilha.Por email, converso com a Sil. Nos fóruns, discuto sobre os grandes problemas do mundo e, principalmente, sobre Deus, graça, amor ao próximo... Essas coisas sobre as quais é muito mais seguro escrever do que viver. Em algumas noites encaro outros monitores e ensino meus alunos a criarem seus próprios elementos tridimensionais que voam. Bom, estudo é coisa importante.E alternando entre essas máquinas lá vai meu dia enquanto minha coluna entorta e minha barriga cresce quase tão rápido quanto o mato lá no sítio que não tenho tempo de cortar.

Não que eu esteja reclamando. Afinal é daqui que vem meu sustento. Hoje, na hora do almoço, até peguei uns 10 minutos de sol enquanto esperava as crianças entrarem no carro.Acabei de ver que a vinheta do novo programa está quase finalizada. Agora preciso fazer um robozinho abraçar o Bruno e o Marrone. E depois construir uma cidade e fazer um carro andar por ela pra promover um político. Bom, política também é coisa importante.

Se olhar pela janela consigo ver o telhado da escolinha onde o Pedro e a Julia estão nesse instante, provavelmente brincando no parquinho. Ah, meus filhinhos... Como amo aqueles dois.Amo tanto que até dói. O que aguarda aqueles dois pequenos, nesse mundo tão maravilhoso e assustador?
Lembrei agora da música que o Pedrinho mais gosta. Ele só canta o refrão: "O mundo é bão, Sebastião! O mundo é bão, Sebastião!". É, o mundo é bão. Só que ele está lá fora e eu aqui dentro.

Outra música. Essa é do mestre Elomar:

"É a ceguêra de dexá um dia de sê pião
Num dançá mais amarrado
Pru pescoço cum cordão
De não sê mais impregado
E tomém num sê patrão
Uma vontade qui me dá
Dum dia arresolvê
Jogá a carga no chão...

Vô cantano inconto posso
Apois sonhá num posso não
Nos tempo qui acenta o almoço
Eu sonho qui num sô mais pião
Uma vontade aqui mi dá
Dum dia arresolvê
Quebrá a cerca da manga
E dexá de sê boi-manso
Dexá carro dexá canga
De trabaiá sem discanso
Me alevantá nos carrasco
Lá nos derradêro sertão
Vazá as ponta afiá os casco
Boi turuna e barbatão
É a ceguera de dexá
Um dia de ser pião
De num comprá nem vendê
Robá isso tomém não
De num sê mais impregado
I tomém num sê patrão"


Elomar - Peão na amarração.mp3